20/12/04

Herbário de António, o Santareno

No Verão de 1996, tive nas mãos o herbário juvenil de António Martinho do Rosário, depois (e espero, apesar de tudo, que para o maior sempre possível) conhecido por Bernardo Santareno, o grande dramaturgo de ‘O Judeu’, ‘O Crime de Aldeia Velha’, “António Marinheiro” e de “Português, Escritor, 45 Anos de Idade”, entre tantas outras obras de lugar cativo na nossa tão rica como amnésica portugalidade. Estagiava eu então na RDP/Antena 2, onde, a troco de estar calado, fui remunerado com a riqueza de ouvir e ver coisas e pessoas de outra dimensão que não apenas esta nossa merceeira condição de sobreviventes a prazo e a malefício de inventário.
O herbário de António (não ainda Bernardo) é o que um herbário antigo tem de ser: uma antologia de folhas e flores coladas de costas ao papel do Tempo, esse impiedoso combustível. Enterneceu-me poder manusear um objecto criado pelas mãos do grande escritor quando moço. Por assim dizer, revisitei, pela mão dele, o tempo dele: as flores dele, as folhas dele, a botânica juvenilidade dele. Depois foram, para ele, os anos de Lisboa: médico psiquiatra, escritor de teatro, homossexual discreto, sombra solitária, portador de óculos de espessos aros, gravata decente, perpétuo cigarro ao canto da boca, sentido atento às vozes de dentro que, soltas dele, se tornavam fora corpos de actores. Os tablados dramáticos encheram-se dessas vozes, dessas vozes por assim dizer herbárias: borboletas vegetais alfinetadas pela revisitação das nossas História, Língua, Pátria, Moralidade, Sensualidade, Criação, Alma, Hipocrisia, Solidariedade, Tragédia; e dos nossos Drama, Desamparo, Confronto, Cérebro, Vazio, Frio, Fado, Exílio, Silêncio e Desconhecimento.
É justo que pouco ou nada disto vos interesse grande ou mínima coisa. É justo que sejamos diferentes, a começar pelos interesses. Esse é, aliás, um dos ganhos a obter da leitura da obra de Bernardo Santareno, esse senhor de quem alguns manuscritos andam perdidos por obra e desgraça da má hora em que deles tornou herdeiro um rapazelho de duvidosa honra e proxenética condição: a justiça da diferença contra a injustiça que toda a indiferença é.
Eu sei: o Povo (essa entidade concretamente humana que vive numa abstracção animal) não vai ao teatro, não gosta de pensar nem de se repensar, prefere mostrar as cáries no desbragamento da gargalhada, gosta mais de broa. Três décadas apenas depois do 25 de Abril, não estamos melhores por aí além. Não sabemos mais, não conhecemos mais nem minimamente nos reconhecemos: como Povo. Queremos ser da Europa sem saber ao certo onde é que isso fica. Deve ser ao pé da Turquia. Temos liberdade de expressão, é certo, mas não sabemos exprimir-nos. Votamos massivamente na Abstenção, desconfiados de que, seja quem for que lá ponhamos, é para nos roubar. E nem sabemos quem foi e o que fez Bernardo Santareno. Posso dar uma ajuda.
Era António. Juntou flores em pequeno.

OS TOFUS, por António Manuel

Na sequência de alguns posts e comentários abaixo sobre o tema da alimentação, julgamos importante prestar alguns esclarecimentos subordinados ao tema “Os Tofus”, alimento tão do agrado da comunidade vegetariana. É uma abordagem necessariamente ligeira do assunto, com base em algumas investigações recentes publicadas em revistas científicas de referência, as quais, aliás, estão a obter amplo reconhecimento dentro da comunidade científica. Assim, de acordo com esses estudos, o Tofu, que se pensava até há pouco tempo ser um preparado de leite de soja (e que ainda é vendido como tal por muitos comerciantes menos escrupulosos…) é, afinal, um organismo multicelular com um sistema nervoso central, rudimentar mas activo e funcional, para além de orgãos reprodutores e digestivos. Pensa-se até que estes pequenos seres terão surgido na época do Plioceneo, pois encontraram-se fósseis dos mesmos durante escavações realizadas no Arizona, nos arredores de Phoenix, em camadas estatigráficas onde se encontraram também alguns anabolites. As recentes pesquisas revelaram mesmo, de forma surpreendente, que estes organismos se mantêm vivos mesmo após a sua sujeição a tratamentos térmicos de 200 graus. A sujeição do Tofu aos sucos gástricos provoca, por outro lado, deformações dolorosas e irreversíveis no seu sistema nervoso parassimpático, causando-lhes assim, ao que se pensa, um considerável sofrimento, seguido de morte em agonia. Aliás, a aplicação de ultrasondas de raios gama enriquecidos com plutónio em tofus recolhidos nas fezes de vegetarianos, detectaram mesmo alguns sons semelhantes a gemidos. A palavra ao Dr. Ebenezer M. Scrooge, MD, Phd, director do American Association for the Study of the Tofu: “In spite of we thinked until now, the tofus are multicelular organisms from de Pliocenum. They possess a rather complex central nervous sistem and when stimulated with accid they react as if they were in great suffer.” (in Scientific Journal for the Research of Endangered Species, September, 2004). Chegados aqui, cabe dizer que não nos cabe moralizar ou aconselhar em matérias da consciência de cada um, nomeadamente no que aos prazeres da comida diz respeito. A cada um a sua decisão. Finalmente, e já que estamos neste tema, uma palavra sobre alguns estudos recentemente publicados que defendem que os coelhos são vegetais. Estas pesquisas, de acordo com o Dr. Scrooge, não foram ainda submetidas a avaliação científica independente, não lhes devendo, por isso mesmo, ser-lhes dado crédito.

15/12/04

Elogio do Mau Gosto, por Automotora

Um dia, aluguei no meu clube de video um filme de um realizador finlandês. Qualquer coisa assim, não me lembro bem. A partir daí, fiquei lá conhecido como “o senhor que leva filmes alternativos”. Sou um alternativo, portanto. Aquela espécie que vai tirar filmes da Atalanta à ponta esquerda da estante do lado mais húmido e pouco frequentado dos clubes de video. A verdade é que raramente tenho vontade de ir para aqueles lados, mas o empregado, de cada vez que lá entro, insiste em conduzir-me para lá, enquanto vai esfregando as mãozinhas, numa solicitude comovente e irritante. Começa pelo ponto de não retorno: “quer uma sugestão para um filme alternativo?” seguindo-se o fatal “chegou agora este. Não sei se conhece”. Este “não sei se conhece”, remete sempre para “filmografias”. A “filmografia” não é filmes, como diria o julinho; é “filmografia”, cinema feito em países de neblinas eternas para além do Danúbio (esses países são antes de mais um estado de alma, como se sabe). Mas então, como ia dizendo, acontece que me vejo de repente com o filme na mão. Olho então para o chão, e começo a desfiar uma ladainha ridícula e cobarde: “Olhe, eu hoje estou com um bocado de dor de cabeça, estou cansado, a vida corre-me mal, sofro de stress pós traumático, o iraque não se democratiza, a vida é dura e então quero levar um filme que não faça pensar muito. O amigo desculpe a desfeita, eu tenho muita pena, não é por mal, mas eu hoje vou levar o Mansão Assombrada III”. O empregado, pesaroso, lá sente obrigação de dizer “ah, sim, é um clássico, sim, sim…”. “Mas qual clássico, qual caralho? É só um filme, seu imbecil!”, penso eu, irritado. Mas lá vou dizendo, com humildade, “pois, desculpe… eu juro que para a próxima levo o Quintal das Cerejeiras em Flor, este grande clássico da filmografia da Letónia”. Feito o negócio, saio porta fora, a sentir nas costas o olhar desiludido do empregado. Fico então paranóico e imagino-o a ligar para os amigos: “ele hoje levou o Mansão Assombrada III, passa palavra”. Coincidência ou não, no fim-de-semana seguinte vou comprar peixe à praça e a dona Alzira olha-me com o cenho carregado e engana-me no peso do pargo. É claro que como sou boa pessoa, (além de cobardolas) uma vez em cada dez dias levo um filme alternativo. Lá vejo. Mas acontece que na maior parte das vezes quero é levar filmes, não sei como diga isto, de “suspanse”, daqueles que aparecem no Expresso com o seguinte aviso desprezivo: “para quem gosta”. Nem bom, nem mau, mas “para quem gosta”, que os vermes não têm escala de valores. Mas chegados aqui, atenção para o seguinte: Há os vermes que chegam aos clubes de video e perguntam: “chegou algum bom filme de suspanse?”, como se dissessem “tens hoje aí tintol do bom?”. E vai o empregado à pipa e tira um carrascão espumoso. E há os vermes, como eu, que não perguntam ao empregado porque já levam lista de compras, feita logo ali à porta da loja, com base nos cartazes grandes da montra. Mas não sou um verme todos os dias, é preciso que se note. Por exemplo, no outro dia, por acaso noutro clube de vídeo, vi um filme dos Monthy Python, mesmo junto ao balcão. Passei-me, claro. “Olha, tem aqui Monthy Python?!”. E então aconteceu o inesperado: o empregado revira os olhos e olha-me assim como se tivesse reconhecido um irmão da maçonaria. “Conhece? Você é o primeiro que aparece aqui a falar dos Monty Python! É fã?” Élá… pensei eu… se caio nesta, vou ser obrigado a levar também a trilogia do primo mais velho do Kusturica. Reajo então com grunhice marialva: “Eu? Eu ia precisamente perguntar que raio de título é este com dois ipsilons! Tem cá, cof cof, o Massacre no Texas?” Fiquei bem servido na mesma e no dia seguinte corri para a Worten, comprei os gloriosos malucos e fim da história. Um gajo para ter descanso, às vezes é melhor fazer-se de burro.

14/12/04

Austrália, por Cão Guru

Deu-se-me o caso de, uma ocasião, passear sozinho por uma duna. Foi num mar aqui perto. A duna fazia o que é de competência de toda a duna que se preze: ondulava muito láctea, muito derramada, muito lânguida. Tão lânguida, derramada e láctea, que, na pele da areia, certas florações escuras de que só os botânicos conhecem o nome me pareciam (valha-me Deus!) hirsutas emanações pélvicas. E mais não desenvolvo.
Lá ia eu, pois, muito bem indo, quando eis senão me desemboco, sem preparatório, com a visão já pouco distante, e em sentido a mim contrário (como quase tudo na vida, enfim), de uma senhora.
Dona da duna, por assim dizer e forçando o trocadilho, a senhora tornava-se mulher à medida que os metros entre nós se volviam meios metros. Ela caminhava com a competência de toda a mulher solitária ao colo de duna: ondulava, muito lacteante e languidamente. Perante isto, tremulei. Pudera.
Parei e dei-lhe o perfil. Pus-me, muito flautista, muito virado para o mar, a assobiar baixinho. Ai, amor: o vento levava-me o solfejo até à zona de desembarque das ondas, onde o oceano rebobina para sempre aquela madrugada de Junho na Normandia, 1944. Mas essa é outra História. À da duna voltemos.
Tivesse eu cauda e ao rabo estaria dando com fúria de limpa-pára-brisas no máximo. (Reconhece o cão que há em ti. Ou o lobo. No caso, do mar.)
Pois, e então a mulher já me estava tão perto, mas tão, que a mecânica da respiração se me tornou mais complicada que a casa de máquinas do Titanic. É que nem menos. Pois que ‘aquilo’ era todo um mulheraço, todo um mármore caminhante, um lençol cristalizado, uma geleia oftálmica toda. Ouvi perfeitamente, passando ela pela minha retaguarda, um amarfanho de papel caro: uma capa de revista ela era.
À falta de melhor, meti diálogo. Disse, naturalmente, a maior estupidez possível: “Linda manhã, hã!?”. Sim, assim: com triste involuntária rima. Ela parou, cegou-me com o magnésio de fotógrafo de casamento do seu olhar sem sombra e disse “I beg your pardon?”.
Devia ser australiana, conjecturei. E, num ápice, fui à enciclopédia da minha cultura demasiado geral para que me seja possível saber qualquer coisa em particular: “Cangurus, deserto e Ópera de Sydney, não é?”.
Ela encolheu os ombros, soerguendo a insuportabilidade da bandeja do busto. E seguiu caminho, sem mais, para fora da minha vida e para longe desta crónica. Limitei-me a acabar a duna, perfurei o trecho de pinhal que se lhe seguia, cheguei à bicicleta e apertei as bainhas das calças com as molas da roupa que a minha mulher não sabe que roubei do arame do quintal, o quintal onde amanho a minha couve, encano o meu feijão, choro a minha cebola e cultivo a minha tão masculina ignorância sobre tudo o que diga respeito a mulheres solitárias e à enciclopédica Austrália.

12/12/04

Bifes com batatas fritas, por Jocta do Tellado

Acabou o jogo e ganhou o Sporting. Como tal, o Zétó saiu contente do estádio em direcção à estação do metro de Campo Grande a agitar uma pequena bandeira verde e branca. Aí chegado encontrou um ribatejano inexpressivo encostado à máquina dos bilhetes que lhe disse:
- Zétó, meu filho da puta, não há meio de perceberes nada desta merda, corno dum cabrão. Nem sei se deva perder tempo contigo.
Disse-lhe isto como se fosse o Eanes a anunciar trovões. Surpreendido pela frontalidade sombria do alegado campino encostado, Zétó enganou-se e comprou à máquina o bilhete errado, desnecessariamente mais caro.
- Ora bolas. Reclamou timidamente o Zétó a olhar para o título e a abanar desolado a cabeça.
- O que é que te falta, afinal, ó ranhoso de merda, o que é que tu queres? Para onde é que tu vais? Quem é que tu pensas que és? O que é que tu pensas? Questionou o ribatejano com delicadeza felina e cínica, acrescentando: Anda cá que eu quero falar contigo.
- O senhor desculpe, já vi que é ribatejano, mas porque é que está a falar comigo assim?
- Senhor o caralho. Disse o presumível campónio imperturbável.
- Sabe que há quem não goste de palavrões? Se fosse a si refreava-me. Pode haver gente que não aprecie. Ripostou com a pequena bandeira verde e branca a meia haste.
- Está bem, pronto, desculpa lá. Não posso é prometer que não volta a acontecer. Mas isso também não é muito importante. Tens um minuto?
- Acho que sim. Depende.
- Pois, compreendo. Mas como é que fazemos?
- Não sei, sugira você.
O ribatejano e o Zétó tinham chegado a um embaraçoso impasse, que demorou cerca de dois minutos a quebrar. Enfim:
- Bem, podíamos ir conversar ao Ribatejo, mas penso que não te dê muito jeito… O que é que achas?
- Não posso. Só tenho bilhete para duas coroas.
- Nunca vi nenhum revisor no metro para o Ribatejo. Não deve haver problema. Embora daí. Desafiou o circunspecto campino.
- Epá, não dá, combinei ir beber umas canecas com os colegas. Para festejar, está a ver?... Não pode ser aqui?
- Seja, que se foda. Desculpa lá. Saiu-me sem querer.
- Não faz mal. Era pior um peido sonoro.
- O que eu te queria dizer era o seguinte: Tu que és um inútil dum imbecil sem emenda, diz-me lá qual é coisa qual é ela, qual é coisa qual é ela…
- Então, está a improvisar?
- Não, é o autor.
- Quer dizer, primeiro fala comigo como se me conhecesse desde a escola primária, insulta-me, depois vem com uma grande conversa sobre uma conversa, e agora não sabe o que é que há-de dizer? Fogo!
- Deixa-me pensar, isto não é fácil…. Já sei. E se o Kumba Ialá te fosse ao cu?
- Isso não me parece muito credível. Quem é o Kumba Ialá? Interrogou o Zétó face a um ribatejano desolado.
- Esquece. Mas por uma sílaba que não rima: kumba, cu… Noutro contexto seria interessante.
- Interessante é a situação internacional.
- Isso não sei, ó amigo. Para isso tens de falar com o ribatejano da estação do Rossio. Queres o telemóvel?
- Já agora. Zétó anotou o número do analista internacional na bandeirinha verde e branca. E, já agora, qual é a sua especialidade?
- Eu cá sou estivador.
- Não parece nada.
- Já não é a primeira pessoa que diz isso. Pensam que eu sou campino. Seja como for, vamos lá a despachar isto.
- Está bem, também já estou farto de estar aqui. Diga lá, então. Exortou o Zétó.
- Imagina que és uma isca de fígado… não, melhor, que és uma patanisca de bacalhau…. Já está? Pronto. Agora vai-te foder, não quero saber de ti para nada, és merda, abaixo de merda, pior que merda. Nem merda és.
- O que é que isso significa?
- É a vida caralho! É uma metáfora da vida, anormal! Respondeu o, por uma vez, alterado ribatejano, aprumando a compostura logo de seguida e passando a mão pelas farripas de cabelo que lhe caíam do barrete verde e vermelho para a testa: Ó meu amigo, eu até já falei demais, eu cá só faço perguntas e ponho as pessoas a pensar. Respostas é com o ribatejano do Intendente.
- Está bem, mas isto parece-me tudo um bocado ridículo.
- É uma maneira de entreter o tempo. Há piores. Pronto, já podes ir à tua vida. Queres o telemóvel do colega do Intendente?
- Pode ser.

10/12/04

Fotografia, por Cão

Perdi uma série de fotografias obtidas num domingo agora duas vezes pretérito. Na impossibilidade de reavê-las, resta-me tentar, hoje e aqui, revelá-las pela palavra.
Uma delas era de duas mulheres quase tão jovens quão pálidas. Apontavam a ninguém quatro olhos dotados da clarividência azul-cosmos dos cegos. Eram cegas, tinham seios perfeitos e apresentavam-se muito bem vestidas: talvez por serem manequins e se encontrarem expostas na montra de um pronto-a-vestir.
Outra das fotografias não conservava gente, fingida sequer, à superfície da eternidade que toda a foto ilude ser. Era de um cão dormindo entre as linhas de um caminho-de-ferro desactivado. Só eu sabia que o cão realmente dormia, que por ali comboio algum passava ainda. Um observador pensaria talvez no atropelamento mortal do cachorro.
A terceira foto (mas porquê “terceira”?; por que ordenamos ainda o que se perdeu?) revelava uma mansarda eriçada de vasos de sardinheiras. Entre as flores, assomava uma cabeça de mulher cuja maior evidência era a desolação da pobreza. O olhar da mulher, recordo-o bem, fixava directamente a minha objectiva, pelo que me é lícito assentar que foi ela a fotografar a própria fotografia que eu haveria de perder.
Lembro-me de ter interrompido o trabalho desse domingo duplamente irrecuperável para tomar um vermute e munir-me de cigarros num café de reformados que escutavam o relato de um Belenenses-Atlético para a Taça. Sem que o notassem, fotografei dois dos velhos à contraluz da montra pontuada de cocó de moscas, prospectos de bailes e editais venatórios.
Já cá fora, a grande tenda solar estava segura ao chão por estacas de árvores e carros estacionados para sempre. Cheirava ao que os domingos cheiram: a espera e a ruas vazias.
Fotografei de costas uma mulher de chapéu que caminhava com a graça involuntária de um charlot diurético.
Fotografei um telefone preto dos antigos, dos de discar. O telefone tocava, ninguém vinha atender, pareceu-me que até o som ficou gravado na fotografia. O som e a ausência de atendimento: ambos impressos na película perdida.
Foi um domingo de roubar luz, esse domingo. Trabalhei muito, depois devo ter guardado o rolo no bolso de um casaco cujo forro se me desforrou, como às vezes a vida se desforra de quem a não vingou.
O que vos ainda não revelei (verbo de fotógrafo) é isto: houve uma fotografia que não tirei nesse dia. Um par beijava-se na paragem do autocarro. Não um desses beijos lambidos, sôfregos, desses de dorsos linguais expostos ao basbaque dos velhos e à má-língua das velhas. Era um beijo bem posto, breve e simbiótico, um beijo dado por aquilo a que chamamos alma quando se usa a boca sem ser para falar ou comer. Não era coisa de adolescentes, mas um beijo claro entre um homem já maduro e uma mulher serôdia já. Não tirei o retrato dessa eternidade mínima.
E curiosamente, de todas as fotografias que tirei e perdi, essa foi, não a havendo tirado, a única que pude guardar para, hoje e aqui, vo-la revelar.