28/02/05

Santana? Quem é esse gajo?, por Tchaikovsky

Há uma coisa que me intriga e que não devia intrigar. É um clássico, já estava nas fábulas gregas: quando o leão está moribundo, todos os pontapeiam. Os primeiros são os ratos.
Santana Lopes perdeu as eleições. A derrota foi esmagadora. Onde estão os seus apoiantes? Quem lhe deu uma maioria tão esmagadora no congreso do PSD? Onde estão? O mesmo, aliás, já acontecera com Guterres que ganhara o congresso com 99% vírgula qualquer coisa e que depois caiu em desgraça. Na altura, só me lembro de ouvir o Carrilho a criticar o Chefe. Agora, poucos se lembram que o apoiaram. Mas em relação ao Santana, cabe perguntar se estamos a falar do mesmo Santana sobre o qual se dizia, ainda não há muito, que era um animal político, um lutador, um homem feito para ganhar eleições. Ainda me lembro da corte de santanetes e acólitos. Gabava-se a obra na Figueira da Foz, aparecia com multidões a apoiá-lo com aqueles actorzecos do Parque Mayer a louvarem-lhe a obra enquanto Secretário de Estado da Cultura. Em Coimbra, houve quem se lamentasse por ele não ter sido o candidato à Câmara Municipal. Santana aparecia em todas as revistas, comentava na TV e dizia-se que era brilhante e que tinha uma boa imagem, coisa indispensável para a política de hoje! Quando ganhou Lisboa, foi a euforia! Onde estão agora? Os ratos já fugiram? Já embarcaram no barco do Sócrates? Estamos a falar do mesmo Santana? daqui a uns meses, Sócrates voltará a ser o nome de um filósofo grego, estou certo.

23/02/05

A crise chegou à Igreja da Geografia, e não há PS que lhe valha, por Zinal

Quando menos esperamos chega a crise. Ela pode vir pela falta de poder de compra, pelos sapatos rotos na sola, pela falta de qualidade do leitão, enfim, por todos os meios, mas há sempre uma via que não esperamos, surpresos verificamos que nem tudo o que é fácil está na ponta da língua.

Vem isto a lume porque há dias bateu-me à porta o cura da Igreja da geografia.

Calha a vez a todos.

Depois de me tentar impingir três livrinhos e quatro ideias cinzentas retruquei com veemência que nem tudo estava no livro, nem tudo era segredo.

Após acesa contenda verbal fui obrigado a rebuscar o fresco na minha memória e disparei, sem saber que o fazia de forma tão mortal, e foi assim:

Então qual o número de cantões da Suiça?

Estupefacto nem o som do silêncio ouvi. Vi apenas caír alguns cabelos sem ouvir o som da coçadela.

Então e em que ano se constituiu o cantão mais recente e qual o seu nome?

(notem que não perguntei a hora, o minuto ou mesmo o dia, perguntei o ano, o ano, nem sequer era necessário escolher entre 365 ou 366 dias com mil raios).

É claro que me senti enganado, assim como quando vou a um tasco e de lá saio esfomeado.

Será que na última ceia a prelecção à confraria irmã foi preparada? As capitais estavam encomendadas? Dei comigo a pensar que era o Conde da Ribeirinha e que estava a ser esventrado pela Heidi ao som do tirolês.

Enfim, a Igreja da Geografia está em crise, e nada se pode dizer pois está em sintonia com o país.

Vou estudar uma matéria porque já não confio na geografia e assim como assim há-de de haver outro concurso em fim de noite…

18/02/05

Este cartoon foi digitalizado a partir da «História de Portugal» dirigida por João Medina (vol. XVIII; p. 274). É um dos melhores cartoons que eu já vi. Uma economia minimalista no traço e tanto que fica dito. Foi publicado em Agosto de 1974. Em Portugal, corria o PREC. Em Espanha, Franco agonizava, mas a Ditadura lutava ainda desesperadamente por se manter. Portugal, que em tempo fora o alvo da cobiça franquista, primeiro, e depois o seu único aliado, era agora o palco de uma revolução que se temia pudesse contaminar a Espanha. Vir a Portugal era como frequentar um prostíbulo infectado. No mínimo, era pecado. O cartoon diz tudo: o poder da Igreja, a confissão, o pecado, o desejo de liberdade, a agonia desesperada do franquismo, a curiosidade sórdida do confessor, a moral hipócrita, o bolor da Espanha franquista, a subsidariedade do processo histórico na Península Ibérica. Do melhor!
















16/02/05

Os Meninos Abandonados, por António Manuel

Um dia destes tive uma surpresa quando encontrei à venda numa tabacaria os livrinhos de contos da famosa Colecção Formiguinha, que tanto alegraram a minha infância. Pequenas histórias morais, para benefício de meninos e meninas, como então se dizia. Comprei logo dois: O Menino Grão de Milho, numa versão algo diferente da que a minha avó me contava (também é verdade que de cada vez que a minha avó me contava a história, e foram dezenas, a versão mudava) e Os Meninos Abandonados. Não resisto a transcrever esta última, já vão ver porquê:

Era uma vez um homem muito pobre, a quem Nosso Senhor dera muitos filhinhos Ora, acontece que, certa noite de Inverno, não tendo tido dinheiro para comprar boroa ou azeite com que a mulher fizesse o caldo, disse a esta, já quando aqueles estavam deitados: - Não tenho coragem para tornar a ver os nossos filhinhos cheios de fome.Assim, caso estejas de acordo, o melhor é levá-los comigo para o monte, quando for à lenha, e deixá-los lá. A mulher concordou, mas o filho mais novo, que ainda estava desperto, ouviu a conversa. Por isso, mal apanhou os pais a dormir, levantou-se e foi muito surrateiro a um ribeiro próximo da casa, de onde trouxe um punhado de seixinhos brancos. Ao outro dia, pela madrugada, o homem saiu com os filhos para o monte, e o mais novo foi espalhando os seixos pelo caminho. Arranca ramo aqui, apanha caruma acolá, e o dia passou-se. E, quando caiu a tardinha, o homem carregou parte da lenha e disse aos filhos que ficassem de guarda ao resto, pois não tardaria a buscá-los. Mas o tempo decorreu sem que ele voltasse E, fazendo-se noite, os meninos desataram a chorar, cheios de medo. – Ai, manos,- gemia um – se o pai demora, não tardará muito que os lobos nos comam! - Se antes não vierem as bruxas e nos levarem a cavalo na sua vassoira, para nos assar no forno – soluçava outro. Então, o mais novinho sossegou-os, afirmando: - Eu sei o caminho. E todos os irmãozitos se puseram a segui-lo, enquanto ele se guiava pelos seixinhos brancos. Deste modo, em breve chegaram a casa, cuja porta estava fechada. Mas, encostando o mais novo a orelha ao buraco da fechadura, ouviu dizer: - que caldinho tão bom, meu homem! Só tenho pena de não ter comigo os nossos filhos, para lho dar. Quem sabe lá o que terá sido feito deles? Corta-se-me o coração ao pensar nisso… - estou aqui, mãezinha! – Gritou então o menino. A mãe abriu a porta e essa noite foi de grande alegria para todos. Não tardou, porém, que a pobreza crescesse E, por isso, o homem combinou outra vez com a mulher abandonar os filhos no monte. De novo, o pequenito ouviu tudo, mas como chovesse muito e, portanto, não lhe fosse possivel ir ao ribeiro, dirigiu-se à talhazinha dos tremoços e encheu uma algibeira deles. Pela manhã, seguiram todos para o monte e, á medida que caminhavam, o menino ia lançando fora os tremoços Os pássaros andavam, contudo, também esfomeados. Por conseguinte deram neles. Assim, quando à noite o pai o deixou e aos irmãos, ele não pôde encontrar o caminho, sucedendo perderem-se (…)”.

Bom, e assim continua o relato em outras tantas linhas. Resumindo, os miúdos acabam por ir ter a casa de um gigante que come criancinhas, conseguem fugir, enriquecem ao serviço de um rei, voltam para casa e tudo acaba bem, de acordo com narrador. Eu não sei é como pode acabar bem uma história com uma família tão disfuncional. Reparem: os pais resolvem abandonar os filhos num monte com o argumento estapafúrdio de que não os queriam ver com fome. E abandonam-nos duas vezes! Os filhos, coitados, que parecem sofrer de um certo atraso mental, à excepção talvez do mais novo, tudo fazem, por sua vez, para serem aceites de volta pelos pais, sem grande sucesso. Ora vejam bem o que diz a mãe ao jantar: “que caldinho tão bom, meu homem”. É claro que ao mesmo tempo vai temperando o caldo com umas lágrimas de crocodilo pelos filhos. Quer dizer, aqueles pais, em vez de dar o caldinho aos filhos, paparam-no eles e ainda tiveram coragem para o saborear, elogiando o seu tempero, quiçá dando estalidos com a lingua, sabendo que os filhos estavam num monte, ao frio e à mercê dos lobos e dos seus medos típicos de idiotas subalimentados. Volto a citar, para arrepio geral: “Que caldinho tão bom, meu homem”. Crudelíssima, esta transferência de afectividade dos filhos para o caldinho. E lembram-se que dizia o narrador, talvez cúmplice na ignomínia, que não havia dinheiro para a boroa e o azeite? Como ficamos, então? E porque não foram eles caçar aqueles pássaros que comeram os tremoços aos rapazitos? Esfomeados como andavam, seria fácil apanhá-los, não? E com os próprios tremoços não se faria um saboroso paté? A história não conta, mas aqueles pais devem ter acabado a noite num colchão de penas das galinhas com que fizeram o caldinho, a gemer lubricamente: “que fellatio tão bom, meu homem”. Agora, pergunto: Como terão crescido aqueles miúdos? Que respeito lhes merecem aqueles pais? Como poderão estes exigir protecção aos filhos na sua velhice? Nenhum, está bem de ver. Parece que estou a ouvir os rapazolas: “Que caldinho tão bom, ó manos! Pena que os nossos pais estejam no monte à mercê dos lobos e das bruxas! Hehehe”. E que efeito terá tido esta história na mentalidade dos que a leram? Como é que me terá afectado a mim? E a história da Menina dos Fósforos, retrato cruel da exploração infantil na industria fosforeira?

04/02/05

Mas afinal, o que está uma puta a fazer no Panteão? por Grande Empernador

Se algum nacionalista místico-casticista, dos muitos que por aí grassam, se acha ainda membro participante dessa merdunça alienante a que o romantismo oitocentista chamou alma nacional, o que quer que isso seja, e que presuntivamente se expressa através de coisas tão vagas - tais como, uma alma lírica, um espírito universalista, uma mentalidade sebastianista e messiânica, costumes brandos, etc. etc. - e que tem como uma das formas preferenciais de expressão o fado, pois fique sabendo que, no que ao fado concerne, tem alma de puta! Por outras palavras: se o fado é a canção nacional pela qual se expressa o espírito místico da nação, então, eu lamento que a Nação se exprima como uma Puta! Esqueçam as larachas sentimentalistas que mitificam as origens do fado com umas nebulosas raízes mouriscas, esqueçam a patranhada que relaciona o fado com o cantar dos trovadores medievais, esqueçam as histórias que metem guitarradas e fadistas nos escombros de Alcácer Quibir ou a bordo das caravelas, esqueçam as origens remotas. Na verdade, a coisa é muito mais simples: o fado tem pouco mais de cem anos e é canção de putas e rufias. Veio do Brasil, onde a cultura afro-ameríndia produziu o lundum, dança brejeira e erótica cheia de empernanços, apalpadelas, pernas a roçar, etc. e etc. A gente sabe como é! Quando me lembro de um funaná dançado com uma mulata na festa dos estudantes caboverdianos ainda fico com tusa, apesar de muita água já ter passado debaixo das pontes! Punha-se um vinil da Cesária, do Ildo Lobo, do Travadinha ou lá o que era e depois juntavam-se os pares. A minha moça, boa como o milho, metia-me a perna no meio das coxas e o joelho roçava-me os tomates. E lá ia eu, dalalim dalalum com o escroto a coçar-lhe o joelho, dalalum para lá, dalalim para cá. Depois era a minha vez e sentia-lhe os grandes lábios a espreguiçarem-se no meu recto femoral. Dava um pau do caralho! Se eu fosse Inquisidor é claro que proibia. Se fosse puritano espreitava, se fosse depravado metia-me ao barulho, se fosse nacionalista aproveitava a música. Quer dizer, Amália é assim como prima de Cesária. Do Brasil, esta pouca vergonha saltou para as tascas de Lisboa pela mão dos marinheiros. Por entre naifadas, putedo, copos de vinho, rufias, brigas, estivadores, fumo, álcool e alguns petiscos, cantava-se o fado. A Severa foi o primeiro grande mito. Amante do conde de Vimioso foi retratada por Malhoa como antítese da Clara. Dentro desta estética naturalista, a Severa, com o seu proxeneta, num ambiente peumbroso de tasca, era o símbolo da decadência moral e física da raça portuguesa. A regeneração viria do mundo rural, onde as virtudes se conservavam intactas e saudáveis. É claro que este maniqueísmo simplista frutificaria. O fado cantava-se nas hortas, durantes os passeios pelos arredores de Lisboa e, lentamente, a boémia aristocrática começou a interessar-se por putas. Do interesse pelas putas veio o gosto do fado. E a pouco e pouco o fado foi ganhando dignidade social. Não tarda, as meninas de família começarão a cantar fado acompanhado ao piano, os meninos de família vão para Coimbra e dão roupagem erudita ao fado. No final, a Amália acaba no Panteão nacional, depois de ter tornado a canção em símbolo da alma nacional. Pelo que o título deste post se justifica plenamente. Sem ofensa pela Senhora Dona Amália (se houver por aí alguém capaz de me explicar porque razão nos devemos referir à Amália Rodrigues como Senhora Dona Amália, eu cá agradecia, 'brigadinhos) Pelo meio, a nossa aristocracia, uma das vergonhas nacionais popularizou-se e começou a achar piada ao fado. Teresa de Noronha terá sido o expoente de uma tradição que persiste com Pinto Basto e o clã dos Câmara Pereira. Fado fino, sem putas e com muita mística nacionalista. Canta-se a Virgem tal como os estudantes de Coimbra cantam as tricanas e os arrebatadíssimos amores de estudante. Claro que, aqui chegados, as origens do fado devem esconder-se. Como não há glória sem genealogia, escondidas as verdadeiras origens, há necessidade de inventar umas. E daí vem a patranhada do costume: D. Sebastião, caravelas, fatalismo mourisco, jograis, trovadores e etc. Eu, por mim, gosto desta alma de puta. Embora deteste o fado e a sua corte de merdosos: os aristocratas, o Carlos do Carmo o Paulo Bragança, o Marceneiro e essa cocozada toda. Gosto da Senhora Dona Amália, acho-a genial. Acho que não devia estar no Panteão porque aqueles anormais todos não são dignos de estar ao pé da Senhora Dona Amália. Devíamos fazer um monumento especial para a senhora dona Amália. A minha ideia é um altar num bordel com a senhora dona Amália abraçada ao Santo António do Rafael Bordalo Bordalo. Fotografava e punha na bandeira nacional!
Quem quiser ler mais, leia o excelente livro de Rui Vieira Nery publicado pelo «Público», cuja capa se reproduz. Silêncio agora, que se vai cantar o fado!

03/02/05

Reportagem, por Jaquim de Zurrara

«Quem usa boina é porque tem frio na cabeça»

As espantosas declarações que dão título a este relato foram obtidas pela nossa reportagem numa ocasião verdadeiramente excepcional. Por dois leitões e uma entrevista exclusiva fomos até ao fim do mundo, passámos para lá do fim da rua. Num raro momento de abertura, os Senhores dos Tonéis, Núcleo Duro e Braço Armado da misteriosa Real Satânica do Tinto, acederam a revelar ao grande público alguns dos seus hábitos e ritos. Sob rigorosas condições de sigilo, o repórter conseguiu finalmente penetrar numa das mais antigas organizações secretas do distrito de Coimbra, na sua peregrinação secreta ao Templo do Bolho. Permitiu esclarecer alguns enigmas, mas muito ficou ainda por descobrir. De resto, para o autor destas linhas, a própria localização do Bolho continua secreta, depois de horas às curvas por entre a bruma e estradas e caminhos irreconhecíveis, algures nas labirínticas entranhas da Bairrada, tendo, inclusive, o Membro do Movimento que nos conduziu ao Templo encenado ter-se perdido no sentido de ser impossível ao repórter reconstituir o percurso.
O carácter clandestino da Organização e da própria povoação onde teve lugar a Cerimónia, é realçado, de resto, pela data mística em que se realizou a Celebração, 28 de Janeiro, dia de São Tomás de Aquino, Presbítero e Doutor da Igreja e, como são todos os dias 28 de todos os meses, Dia do Arcanjo da Terra, como descobriu a nossa investigação numa publicação igualmente secreta e misteriosa, o Borda D’Água (“Reportório útil a toda a gente”).
Afinal, tratava-se de um acontecimento de magna importância para a Entidade, em plena Época Oficial do Plantio do Centeio da Couve Galega dos Nabos das Nabiças dos Rabanetes da Salsa e do Tomate. Mas sobretudo porque nessa noite se iriam definir hierarquias no centenário Grémio, mediante o teste da exigente Prova Cega dos Vinhos, liturgia de que se abstém o repórter de pormenorizar de tão insondável. As bombásticas declarações constituem, enfim, as primeiras palavras secretas do novo Mestre Cósmico do Tinto, que renova o mandato e a vantagem na liderança da Organização. Mais uma vez a honraria ficou na misteriosa terra anfitriã do Acontecimento, cabendo o Supremo Avental ao elemento bolhense, que adiantou desde logo à nossa reportagem, em jeito de promessa, que gostaria de ver a Cicciolina no lugar de ponta-de-lança. «Ponta de lança», afirmou categórico o novo Mister, que ofertou o repórter no final da cerimónia com três tangerinas, gesto altamente simbólico e respeitado entre Os Membros.
Até chegarmos às famosas primeiras palavras oficiais do líder, no entanto, este teve de superar uma competição impiedosa perante os restantes 12 comensais/competidores (o que perfaz, como poderá o leitor notar o Total perfeito e mais uma vez altamente simbólico de 13). Como nos concílios para a escolha do Papa, o ambiente é solene mas de grande tensão. A riqueza e a amplitude do debate, ao proceder-se à análise dos oito néctares em prova, não impede uma enorme agressividade competitiva e um intenso jogo de bastidores, não sendo raras públicas acusações de sinistros conluios e obscuras alianças de circunstância. A harmonia dos 13, apesar de firme nos propósitos, não resiste ao stress da escolha e da responsabilidade. «O processo está inquinado!», proclamava, alto e bom som, um dos Elementos no início da Prova, pondo irremediavelmente em questão a transparência do concurso e dando azo a uma constante troca de acusações entre indivíduos ou facções, acabando por favorecer, no entanto, uma dialéctica agressiva mas enriquecedora. Principalmente no episódio em que o Mestre é frontalmente questionado por um dos 13, acerca de um dos “tabus” desta celebração especial por alturas de vacinar porcos contra as doenças rubras: Comer ou não comer durante a Prova? Antecipando os dois bácoros bairradinos, amais o fiel Sarrabulho, um dos Elementos afrontou severo a mesa e disse, silenciando os presentes: «Esta merda não é nenhuma competição oficial foda-se, só não se come porque tu não gostas, caralho». Apesar da violenta troca de argumentos em torno da mesa, impassível na senda vitoriosa, o Mestre escutou atento mas lacónico os reparos dos seus pares. Ao centro, as oito garrafas em juízo, aguardando fumo branco.
O estado de espírito dos contendores reflectia, sublinhe-se, a própria complexidade do evento, claramente reflectida em pareceres que se iam escutando como «um tom violeta, quase verde», ou «um travo banana com manteiga», frases que traduzem a extraordinária minúcia da análise.
No fim, ganhou quem mereceu e não ganhou o vinho mais caro, pormenores que deixo para divulgação oficial do grémio satânico. A entrevista ao porco tricampeão decorreu precisamente no final da cerimónia, submetendo-se este, magnânimo, ao interrogatório dos demais confrades que, democraticamente, fizeram cada um sua pergunta ao mestre bolhense. Desde logo, e significativamente, o Supremo Méne revelou que se fosse treinador do Chelsea contratava imediatamente «o Manuel Fernandes, do Benfica». Bombástico, como discurso inaugural, mas mais maravilhamento estava reservado aos presentes. À pergunta «em termos tácticos, o que é que achas que o Trapatoni tem falhado no Benfica?», não deixou créditos por mãos alheias, ajeitou as costas para trás no seu cadeirão à cabeceira da mesa e disse, com rosto solene nas pausas e serenidade nas interrupções: «Opá, tem falhado muita coisa. Do ponto de vista táctico acho que ele ainda não afirmou um modelo de jogo para aquela equipa, modelo de jogo… Agora, o que é que eu preconizo?... Acho que ele tem de trabalhar mais, acho que é um treinador ultrapassado em termos da metodologia do treino, a equipa não corresponde em termos de modelo de jogo aquilo que ele pretende, porque acho que não trabalha…Do ponto de vista mental também acho que… [comentários laterais: «dá um prato ao gajo, parece uma alma penada!...», «está calado caralho!», «atenção, pá, deixem o homem falar… A sério, isto é uma brincadeira séria…»] … E penso que o Benfica este ano não vai ganhar o campeonato», afirmou convicto, deixando a todos rendidos na sala.
Bem mais importantes revelações, como a de qual vai ser a equipa vencedora da Super Liga, o nome do futuro campeão, entretanto, foram escamoteadas graças à incompetência ou à perfídia do Membro a quem coube a tutela do gravador, retirado ao repórter, impedido de intervir neste sub-rito. A parte do nome do clube, de facto, não ficou registada, mas não se perdeu a fundamentação, tornado as seguintes declarações num verdadeiro enigma gnóstico para os vindouros: «… Vai ganhar o campeonato porque é a equipa com o modelo de jogo mais organizado, mais coerente, mais consciente… Vai ganhar o campeonato». E está lançado o Mistério. Maior desafio foi porventura a questão seguinte, de um Elemento particularmente sagaz: «Dos treinadores da I Divisão quantos é que já trouxeste aqui ao Bolho?». A resposta esteve à altura da lógica tortuosa do interrogador: «Nenhum!», declarou o Mestre com determinação.
A demanda mais vil e complexa, no entanto, proveio do Membro espanhol da Confraria, que manifestou, mais em jeito de provocação que de pergunta: «Ganhar, ganha-se facilmente com vinhos portugueses, o difícil aqui é ganhar com vinhos espanhóis. Quando é que ganhas com vinhos espanhóis?» [comentário lateral: «Boa pergunta!»]. A resposta do Mestre foi demolidora, invocando a táctica do quadrado e o espírito da padeira de Aljubarrota: «Não conheço, não invisto no espanhol», foi a imediata e extraordinária contra-argumentação do lusitano bolhense.
Outro tema interessante foi o suscitado pelo seguinte inquisidor, que quis saber o que achava o Mister acerca da «relação entre o futebol e o vinho». A resposta não defraudou as expectativas do grupo: «O futebol e o vinho têm uma relação muito profunda. Escolher um bom vinho é como construir uma grande equipa de futebol» [comentário lateral: «Foda-se, óh égua! Está bem visto…»]. Mas a “piéce de resistance” estava guardada para o final, tendo sido reservada a honra da última pergunta ao iniciado do Colectivo, que a todos assombrou ao referir que trazia ali uma questão sobre «coisas sérias». Qual? Nada menos que: «Sócrates ou Santana?». Tema que proporcionou ao Mestre uma demonstração inequívoca de toda a sua virtuosa sabedoria, na obediência pelos princípios do Supremo Equilíbrio Cósmico: «Nem um nem outro», respondeu o Grande Mister, acrescentando que não tem por hábito utilizar dildos e outros artefactos de apoio ao coito. «Porque não preciso», precisou, pondo fim ao centenário Sub-Rito das Perguntas. E, por ser verdade, assim aconteceu.