09/06/10

«O Deserto Cresce: Ai Daquele que Traz Desertos em Si», por Zaratustra

No fim de semana passado vi um filme que me causou uma forte impressão. Talvez seja uma obra prima, talvez tenha, apenas, momentos que são obras primas... Seja como for, O Anti Cristo de Lars von Trier é um filme genial.

No entanto torna-se difícil falar sobre ele porque a carga simbólica das imagens é muito forte e creio que as palavras ficam muito aquém daquele universo visual. O filme está cheio de alusões, de metáforas, de conotações que eu não consigo reproduzir verbalmente e por isso é tão difícil falar sobre ele.

Trata-se de um daqueles filmes que exige competências que vão muito para lá das competências de um cinéfilo. Li críticas de especialistas em cinema que não perceberam nada daquilo (para a crítica portuguesa o filme foi considerado péssimo, mas nos blogs brasileiros encontramos abordagens muito mais correctas). E porquê? Porque o filme é uma espécie de recriação cinematográfica do clima filosófico da obra de Nietzsche (por isso é que o filme se chama O Anti Cristo). Sem se saber nada sobre a filosofia Nietszcheana o filme pode passar ao lado mesmo de quem sabe muito de cinema.

Como disse é-me difícil escrever sobre um filme com estas características. Apenas alinharei aqui, esquematicamente, algumas linhas de força d`O Anti Cristo, directamente inspiradas em Nietszche. Lá estão as grandes intuições do filósofo alemão, a saber:

1) A ideia de que na base da vida está uma força oculta (que já o budismo ou Heraclito identificam) a que Nietzshe chamava «a vontade de poder»;
2) A noção de que essa força vital é essencialmente amoral. E dada a sua amoralidade ela pode parecer-nos cruel e má - satânica... No filme diz-se que a natureza é «a casa de Satã» porque a sua lei inexorável é a da morte e da destruição que faz perecer tudo o que é;
3) A noção de que a natureza é a expressão mais clara dessa vitalidade amoral.Von Trier consegue mostrar-nos a natureza, ou melhor, os seus efeitos mais corriqueiros como ameaçadores. O filme enquadra-se, neste sentido, no género Terror, mas é um terror diferente do habitual. As gotas da chuva que são atraídas pela gravidade, as bolotas que caem de uma árvore, os ramos que se partem, os animais, as coisas aparentemente mais banais, tudo é terrível, ameaçador... O realizador leva-nos a temer a natureza ao dar-nos a entender que tudo isso são mecanismos accionados por uma força oculta mais poderosa. Depois deste filme não poderemos olhar para a «maravilhosa» natureza como até então.
4) A ideia de que a natureza é muito mais que a sua manifestação visível. A natureza não é a erva, a flor, a árvore, a raposa, é algo mais profundo que tudo rege. Essa força oculta é visível por todo o lado, no envelhecimento e na morte de um ser humano, como na ferrugem de um metal, na folha caduca ou na fruta que apodrece;
5) A ideia de que essa força é terrífica.
6) A noção de que o ser que encarna melhor a essência da natureza é a mulher (no filme Charlotte Gainsbourgh encarna a Louca, a Bruxa, a Violência e a Crueldade) e que o homem é o sua antítese ( William Dafoe é um psiquiatra que procura lidar/controlar por meio da Razão a Natureza indómita da Mulher. No fim ele só vence aparentemente).

Para quem se arriscar a ver o filme, convém que esteja preparado para as cenas mais cruas, algumas mesmo chocantes. Algumas cenas são mesmo para virar a cara para o lado, mas percebe-se o sentido daquilo e, de facto, nós temos essa defesa perante aquela violência (que não é gratuita),a de virar a cara para o lado.

4 comentários:

Anónimo disse...

um filme panteísta portanto ! Tenho-o guardado há meses no meu pc para um visionamento oportuno. Não sou fã do "dogma" mas parece-me que este filme está à margem dessa escola. Com esta crítica do Tapor é tempo de ver o filme.
Saudações Açorianas.
JNAS

Anónimo disse...

O Lars precisa de terapia ! A crítica é superior ao filme embora este seja perturbante qb. Há ali qualquer coisa da insanidade de Shining emoldurado numa fotografia sublime sob a legenda "a natureza é a Igreja de Satã" e se a natureza humana é ruim a das mulheres é diabolicamente sádica ! Psicologia de pacotilha pret a porter. Prefiro a Gainsbourg chanteuse tipo assim :http://www.youtube.com/watch?v=tJrOom-S3ek&feature=related
JNAS

Anónimo disse...

Já vi que não atinaste com o filme, JNAS :-)... Mas reconheces-lhe a «fotografia sublime». pessoalmente creio que é muito mais que isso, como digo, creio que ele cria imagens-arquetípicas que vão muito para lá da simples «fotografia». para mim é mesmo aqui que reside a força do filme e é sobre isso que me é difícil falar. de resto também não me revejo na tua expressão «psicologia de pacotilha» porque o fundamento filosófico do filme também vai muito para lá da psicologia.
Mas tou de acordo com duas coisas que dizes: que o homem precisa de terapia (mas oxalá não se cure tão cedo e continue a fazer filmes destes); e que também prefiro a charlotte do teu tube :-).

Ah, e já agora, na sequência do que dizes, esse aspecto da natureza satânica da mulher também não me convenceu inteiramente, digamos que o filme não é inteiramente consequente nesse aspecto...

abraço e manda sempre, mene
Zaratustra

Anónimo disse...

Manda nas é mais sugestões cinéfilas ! Não desatinei por completo com o filme mas arrasta-nos para um universo demencial que só se justifica pelo prólogo do filme.
Saudações Açorianas.
JNAS