31/12/10

A Minha Lista 2010, por Adérito

Já é uma tradição do Porco: as listas dos livros lidos durante o ano, uma tradição que é, aliás, anterior à própria blogosfera e até à internet. Vem dos tempos do Liceu D. Maria e eu faço questão de a reeditar todos os anos aqui no Porco. Fico a aguardar a vossa lista, pode ser mesmo nos comments que eu depois traduzo em forma de post)... A minha aí vai:

Robert Harris – Pompeia, Bertrand, 2003
O ano começou com a ficção histórica de Harris. Tinha lido o Fatherland, uma óptima ideia que achei mal explorada, mas ficou-me a apetência pelo autor. E havia uma referência elogiosa a este Pompeia de uma das mais ilustres leitoras deste blog.No entanto Pompeia foi para mim uma desilusão e confirmou a veia mais policial de Harris que, sinceramente, não me interessa muito…

Edward Peeters, História da Tortura, Teorema
Fiquei com este livro na cabeça desde que vi uma exposição sobre instrumentos de tortura no Pátio da Inquisição aqui em Coimbra. Na altura não o comprei e o livro transformou-se numa dessas espinhas atravessadas no meu consumismo. Até que o encontrei numa feira do livro na estação de S. Bento no Porto. Comprei-o mas… Que grande decepção. Uma banalidade absoluta muito longe da qualidade da exposição que, essa sim, foi marcante.


Nietzsche – O Anti Cristo, Guimarães
Uma releitura, porque é sempre imperioso voltar a Nietzsche. Agora voltei motivado pelo filme homónimo de Lars Von Trier.

Michael Streeter - Franco, Texto.
Franco é uma personalidade fascinante (como Salazar), um dos homens que mais marcou o destino da Ibéria. Apanhar esta versão digest da sua biografia foi que nem ginjas. Um bom começo para quem, como eu, quer aprofundar o tema.

V.S. Naipaul, Uma Vida Pela Metade, Bertrand.
Uma das mais gratas surpresas do ano! Descobri Naipaul por acaso numa estante cá de casa. E foi amor à primeira linha. Gostei do tema, da narrativa, da biografia multi-cultural do autor e da personagem do livro (um indiano que passa pela Inglaterra e pela África Portuguesa) e, sobretudo, do esplêndido estilo despojado e meridiano.

Roberto Bolaño, 2666, Bertrand.
2666 foi considerado um acontecimento literário. Bem, acho eu. 2666 não é um livro, são cinco e todos desiguais. É portanto um livro irregular porque não é verdadeiramente um só. Mas adorei três dos livros de 2666 e marquei Bolaño como um nome a ter em conta.

Selma Lagerloff, Os Milagres do Anti Cristo, Bertrand
Uma espécie de romantismo escandinavo. Selma Laggerlof foi Nobel da Litertura e é uma excelente escritora. Mas este livro, pese embora a notoriedade do estilo, não me marcou especialmente.


Gabriel Garcia Marquez, Cem Anos de Solidão, editora Record
Nunca tinha lido os Cem Anos, parecia impossível…


Eugen Fink, Nietzsche.
Estou sempre a voltar a Niezsche. Fink é um dos seus comentadores mais conceituados.

Paul Naudon, A Franco Maçonaria, Europa-América.
A quadratura do círculo. O formato é demasiado enciclopédico, quer dizer, parece um daqueles livros com dados que não foram feitos para se lerem de um trago, mas para consulta. E, contudo, é um livro de bolso Europa-América. Assim nem literatura histórica nem verdadeira obra de consulta…

Maria Cristina Pimenta, Guerras no Tempo da Reconquista – 1128/1249
Não é só este livro. Toda esta colecção de livros de História de Portugal editados, salvo erro, pela Associação de Professores de História ou coisa parecida, é um óptimo serviço à causa da divulgação da história nacional. E bem precisamos…


Carl Grimberg,História Universal, Europa- América, vol. … Roma
História Universal, vol.2 (Dos Persas à Grécia Clássica), 4 (Das origens à formação do império romano), 5, (O império romano) e 7 (Das cruzadas às guerras hussitas)
Começou o Verão e deu-me para me aventurar nos velhos volumes de uma História Universal da Bertrand que tinha cá por casa. Os clássicos são eternos(mas faltam-me alguns números como se pode verificar...)!

Sade, Os Infortúnios da Virtude, Europa- América
Excelente! Mas a seguir tentei A Filosofia na Alcova e achei que pouco tinha a ver com Justine. Sade perdeu-se no seu «sadismo», nas descrições da abjecção sexual. A parte filosófica parece colada a cuspo, como se fosse outro livro. Pelo contrário, Justine não é nada disso – porque sabe articular sem ser à força reflexão a trama narrativa, porque as cenas de sexo não aprecem como apêndices mas como partes essenciais da narrativa. Os Infortúnios é excelente, a Filosofia na Alcova é Marquês em saldo…

Camilo Castelo Branco, A Queda de um Anjo
Como é que eu não conhecia este Camilo? Um primor de erudição, de sentido de humor, de mestria literária. E ainda por cima um livro muito actual no seu retrato impiedoso da boçalidade convertida em deputada da nação, tão válido no tempo de Camilo como agora (mais agora…)


Laura Restrepo – A Noiva Obscura, Bertrand.
Uma óptima surpresa! Para cortar a onda dos autores masculinos.

Ziraldo, Ziraldo.
Ele ficou mais conhecido como o autor da turma do Saci Pererê mas é muito mais que isso. Um óptimo livro numa excelente edição de luxo, como deve ser tratando-se, ainda por cima de belas artes, sobre um dos maiores artistas pop do Brasil.

John Updike, Coelho em Paz, Bertrand
Fabuloso! Updike é um dos grandes nomes da literatura americana do século XX. A descrição inicial da chegada da família ao aeroporto é magistral. Cinema em estado puro, ou literatura com uma qquidade visual que parece que não lemos mas vemos o que se passa.


Sade, A Filosofa na Alcova, Bertrand
Deste já falei em cima. Nem o consegui acabar. Acaba por se perder enquanto reflexão filosófica, tanto como enquanto livro pornográfico.

Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães, Bertrand
- Mina de Diamantes
- O Malhadinhas
Descobri Aquilino tarde mas a horas! Não conheço nenhum romancista com uma riqueza lexical tão vasta como a de Aquilino – nem Eça, nem Camilo. Comecei pela Casa Grande e li de enfiada os outros dois. Achei A Casa Grande uma obra prima, os experts que me desmintam…


Chico Buarque – Leite Derramado, D. Quixote.
Apesar do prémio não me pareceu um livro ao nível do que Chico já foi capaz de fazer, por exemplo em Budapeste. Um perigoso resvalar light…


Alberto Moravia, Uma Ideia da Índia, Tinta da China.
Fabuloso! Literatura de viagem é isto. Depois deste livro não aumentou só o meu conhecimento da Índia. Aumentou também o meu desejo de Índia. E num país, o nosso, onde é impossível arranjar uma história da Índia, este pequeno, simples e fantástico livro de Morávia tornou-se, para mim, um dos meus acontecimentos literários do ano de 2010.

Harold Bloom, Como Ler e Porquê, Caminho 
Crítica literária sabedora. Contudo é claro que o autor vale-se de algumas formas pedantes, talvez por razões comerciais, do estilo «este é o melhor do mundo» e este quase que lhe chega aos pés, este bate aquele. E eu que pensava que a literatura não é um concurso de misses nem um campeonato de futebol…. Também é irritante a veneração a Shakespeare – parece que o homem já disse e fez tudo o que há a dizer e a fazer em literatura e que os outros mais não fazem do que dizer quase tão bem como ele. Achei a matriz anglo-saxónica demasiado marcante – a esmagadora maioria dos autores citados são anglo-saxónicos. Mas porquê Cormack Mccarthy e não Reverte ou Cela ou Lobo Antunes? Porquê Keats e não Baudelaire? Porquê Shaw ou Emile Bronté e não Aquilino ou Eça? (também reconheço, este meu estilo de crítica é lixado porque se aplica a seja qual for o nome escolhido. Mas, de facto, a matriz anglo-saxónica de Bloom torna-se o denominador comum às suas escolhas)


Ruy Castro – O Anjo Pornográfico, a Vida de Nélson Rodrigues, Companhia das Letras, 1992.
Eu nem fazia ideia de quem era Nélson Rodrigues até ler este livro (que nada tem a ver com pornografia, apesar do título). Mas o escritor carioca (não de origem mas por adopção) Ruy Castro é um contador de biografias (e não só) tão brilhante que eu não resisti. Se ele escrever uma biografia do Tatonas avisem que eu leio…

Pedro Flor, Nuno Gonçalves, quid novi, Público, 2010.
Um não livro. Uma nulidade absoluta de um autor que não sabe escrever, com uma disposição absurda das fotos. Um monumento à irrelevância e à doutorice da treta. Uma oportunidade perdida pelo Público de lançar uma boa ideia, esta dos pintores portugueses… E sobre este tema até temos a Teresa Castello Branco…

Jean Granier, Nietzsche, Lpm Pocke encyclopedia, 1999
Eu não digo? Granier foi um eminente professor de filosofia, especialista em Nietzsche e uma referência do jovem Albert Camus. Só podia dar algo de bom. E deu…

Mathias Énard – Zona, D. Quixote.
Definitivamente, por melhores que sejam, por mais nóbeis que ganhem, não leio escritores que fazem frases que duram três páginas sem pontuação. Definitivamente!

Pedro Rosa Mendes – Peregrinação de Enmanuel de Jhesu, D. Quixote.
O regresso do autor de Baía dos Tigres. Peregrinação é um bom livro, mas poderá o Pedro Rosa Mendes libertar-se alguma vez do ponto estratosférico que atingiu com o seu primeiro romance (Baía dos Tigres)?


Phillip Dick, Depois da Bomba,
Espaço para ficção científica psicadélica e delirante de Dick. Um virar de página no estilo, depois dos clássicos Clark e Asimov…

Aquilino Ribeiro – Aventura Maravilhosa de D. Sebastião Rei de Portugal, Bertrand, 1975
Encontrei-o na feira das velharias por 1 euro! A primeira parte com a descrição da batalha de Alcácer Quibir é brilhante. E a parte final, o encontro de D. Sebastião com o rei e primo Filipe uma grande epílogo. Pelo meio fica um certo sabor a romance de aventuras, mas do melhor…

Eça de Queirós, A Relíquia, Bertrand.
Eis aqui um Eça que tinha sobrevivido à euforia que foi para mim a sua descoberta há muitos anos atrás, altura em que devorei todos os Eças que apanhei. Este tinha-me escapado e li-o, só agora, como quem encontra uma jóia num sótão de tesouros perdidos. E o melhor é que ainda me falta pelo menos um romance de Eça de Queirós ( A Ilustre Casa…)...


Carl Sagan – Contacto, Gradiva.
Que Sagan era um génio, já se sabia. O que eu não sabia é que a sua genialidade também se materializou no formato romance de ficção científica. O livro leva mais longe as excelentes ideias que já se conheciam do filme homónimo de Zemeckys.

Laurentino Gomes, 1822, Porto Editora.
Laurentino Gomes, um jornalista brasuca dedicado à investigação histórica, tinha sido uma das minhas revelações do ano anterior com o excelente 1808 que narra a história da fuga e permanência da família real portuguesa no Brasil. 1828 é uma espécie de continuação e conta-nos a história da independência do Brasil com D. Pedro I e seu filho D. Pedro II. Oxalá Laurentino Gomes não pare por aqui…


Arthur C. Clarck – O Leão de Comarre
Li-o com interesse para perceber melhor o contraponto cristalino com a prosa delirante (mas não menos aliciante)de Phillip Dick…

Arturo Perez Reverte – A Sombra da Águia, Porto Editora.
Sobre este saiu post mais em abaixo...


Jorge de Sena, Sinais de Fogo, Público.
Jorge se Sena é essencialmente um poeta – romances publicados, apenas este Sinais de Fogo. Quanto ao mais, uma novela (o excelente O Físico Prodigioso), contos e o resto é poesia e ensaios. Sinais de Fogo passa-se, sobretudo na Figueira da Foz à data da guerra civil de Espanha (e a Figueira que sempre foi um destino de espanhóis até ser um destino de ninguém)…


Ruy Castro – Rio de Janeiro, Carnaval de Fogo, Asa.
E prontos! Ruy Castro para fechar o ano em beleza. É um livro belíssimo daquele escritor de quem eu leria até a biografia do Tatonas. Castro escreve sobre o Rio mas numa interessante perspectiva que cruza os tempos, as diferentes cidades que existem numa só, as que existiram e já não existem, as que nunca chegaram a existir… Para quem ama a melhor cidade do mundo, este livro lê-se como um vício: não se consegue largá-lo e quer-se lê-lo de um só fôlego. Pode-se dizer melhor de um livro e de um escritor?

E para finalizar deixo um conjunto de obras que muito me influenciaram no ano de 2010. Li-as ao longo do ano, não de seguida, claro. Limito-me a deixar a sugestão sem mais comentários, não vá disparar a caixa dos comments em habituais ataques de que sou alvo pelo bando de hereges que me conhece, quando me refiro ao tema em causa:
Henry Arvon – O Budismo, Eur- Am.
Dalai Lama, A sabedoria do Coração, pergaminho,
Alan W. Watts, O Budismo Zen, Meridianos
Tony Morris, Em que acreditam os budistas, D. Quixote
Malcolm David Eckel, Conhecendo o Budismo - Origens, Crenças, Práticas, Textos Sagrados, Lugares Sagrados, editora Vozes

16/12/10

Dicionário Do Mofino

Jornalista, s.2 gén. o que transforma todos os factos em notícias e, estranho sortilégio, todas as notícias em factos; alguém que ainda não decidiu se o mundo pertence ao género realista ou ao género fantástico; um tipo particular de intrometido que confunde o interesse público com o interesse em publicar; Segundo Kraus, aquele que tem uma rara habilidade a expressar as ideias que não tem; aquele que está sempre em cima do acontecimento e, não raras vezes, à frente dele.

(citado, com a devida vénia, do nosso amigo ali do canto: http://dromofilo.blogspot.com/)

14/12/10

A Nigella é Gorda?, por Ribeirinho

O Porco está na onda da culinária. No post ali em baixo acerca do do grande Bourdain, gerou-se uma polémica acerca da Nigella Lawson, emérita cozinheira britânica que delicia os apreciadores do programa com as suas magníficas receitas. Eu sou daqueles que, às vezes, dou por mim a olhar para aquilo sem saber sequer qual a receita que ela está a ensinar... Mas com o tempo comecei a suspeitar que, pese embora a imponência dos seus decotes, a Nigella esconde qualquer coisa. É preciso dizê-lo com frontalidade: a Nigella é gorda!

Não tenho provas irrefutáveis para afirmar esta heresia. Baseio-me apenas no que ela não mostra e não no que mostra. Se repararem é rara a foto da Nigella em que ela aparece a corpo inteiro: é sempre retratada da cintura da cima e, até no programa de tv, aparece sempre de saias pelos pés. Com generosos decotes, é certo, mas sempre filmada da cintura para cima. Porque é que nunca lhe vemos as pernas? Porque é que ela usa invarivelmente saias compridonas? Porque é que nunca é filmada de costas? Eu acredito na existência de uma coincidência. Não acredito é na existência de várias coincidências ao mesmo tempo. E é por isso, baseando-me unicamente naquilo que é ocultado e não naquilo que é mostrado, que eu afirmo alto e bom som: a Nigella é gorda! E não o assume, o que é ainda pior. Que o refutem os fãs, se disso forem capazes.

12/12/10

Arturo Perez Reverte – A Sombra da Águia, por Capitão Garcia

A Sombra da águia é um livro relativamente antigo de Perez Reverte, publicado inicialmente sob a forma de folhetim jornalístico no El País em 1993. É mais um livro na mesma linha de O Hussardo ou de Um Dia Cólera. Reverte é um expert na narrativa de batalhas que ele consegue retratar com um raro espírito burlesco. Nas batalhas de Reverte vemos as vísceras, os estropiados e a crueza da guerra mas o tom não é lamechas nem melodramático é, pelo contrário, irónico e humorado.

O livro é muito bom na concisão o que se deve, sem dúvida, ao facto de ter sido elaborado como uma peça de encomenda. Talvez isso tenha sido benéfico, deu pelo menos uma aura de coerência e de concisão à narrativa. Isto de os artistas criarem por encomenda já lá vai o tempo, agora o artista limita-se a criar e dar vida ao seu daimon interior. Mas nem sempre foi assim e grandes obras primas da história da humanidade foram simplesmente encomendadas - os grandes quadros de Velásquez ou de Goya que eram pintores da corte, muito do que fizeram os magníficos holandeses que se especializaram em retratos da burguesia florescente, grandes génios da Renascença como Da Vinci ou Miguel Ângelo... No fundo, no passado era normal que a verve criadora do artista estivesse subordinado à encomenda dos poderosos - reis, nobres, burgueses abastados... Só mais tarde se normalizou o artista pessoal.

A Sombra da Águia baseia-se num acontecimento real: Em 1812 durante a campanha napoleónica da Rússia num combate adverso para as tropas franceses, o batalhão espanhol 326, constituído por prisioneiros alistados à força, tenta passar-se para o lado inimigo. Mas o seu movimento é interpretado erroneamente como um acto de coragem por Napoleão que envia em seu auxílio uma carga de cavalaria das suas tropas de elite. Para os espanhóis trata-se de manter um equilíbrio tenso e periclitante: se desertam demasiado cedo e os franceses percebem, são chacinados por estes; se desertam demasiado tarde são os russos que lhes fazem a folha. Trata-se pois de manter a a aparência de que combatem corajosamente por Napoleão até chegar o momento certo em que deixarão cair a bandeira imperial para içarem a bandeira branca da rendição (ou deserção). Só que nunca o vão chegar a fazer… O certo é que o desespero dos espanhóis espicaça os franceses que conseguem vencer uma batalha praticamente dada como perdida…

Como notas dignas do melhor Reverte deixo aqui estas duas citações finais que pretendem caracterizar a magnífica erudição de Murat, um famoso oficial de Napoleão Bonaparte:


«a respeito do cheguei, vi e venci, Murat fora buscar isso a um livro de gravuras dos filhos, qualquer coisa que um general grego, ou talvez fosse romano, tinha dito diante das muralhas de Tróia quando aquela cabra abandonou o marido para fugir com um tal Virgílio, depois de ter metido dentro de um cavalo de madeira. Ou vice versa,»


«Foi osmérico.
-Osmérico?
-Sim. Sabeis, sire: Osmero. Aquele general zarolho que conquistou Troia. O dos elefantes».

09/12/10

No Reservations de Anthony Bourdain, por Bifana Bifana

A Sic Radical está de parabéns! De segunda a sexta, por volta das 21.30/22 (nunca é exacto) o canal passa a excelente série No Reservations do mestre Anthony Bourdain. Eu vejo religiosamente todos os episódios que posso e, como eu, uma boa parte da malta daqui do Porco. Não sei bem como qualificar este programa. Aparentemente é um programa sobre comida. Mas não tem nada a ver com os programas de comida tradicionais. No Reservations está nos antípodas dos programas de culinária para donas de casa. O formato até conheceu algumas inovações nos últimos tempos - os programas de Jamie Olivier, um inglês engraçado, e da voluptuosa Nigella até são interessantes, mas enfim, não aguento mais de 10 minutos a ver aquilo. É que não descolam do tema comida.

Bourdain não! No Reservations é mais,muito mais que um programa sobre comida, é um documento sociológico, estético e político. Bourdain nunca fala de comida só por si. No seu programa dá-nos a conhecer gente interessante dos quatro cantos do mundo, fala da cultura dos povos que visita, das paisagens e da alma dos países e a comida aparece apenas como um mais um traço identitário (embora fundamental num programa desta natureza). A gastronomia de um povo tem a ver com a sua alma, tal como a música, a literatura, os mitos, as lendas e a história... No Reservations fala de tudo isso - no Japão Bourdain falou-nos de uma inacreditável arte de arranjos florais, na Jamaica de reggae, em Bogotá na solidariedade das pessoas contra as máfias da droga, no Sri Lanka dos conflitos entre singaleses e tamis... Acho que se entende como é que Bourdain está nos antípodas dos antigos programas de culinária para as donas de casa, e muito, mesmo muito distante dos programas da Nigella e do Jamie Olivier...

E depois há aquelas filmagens da comida, absolutamente brilhantes! Os grandes planos dos pratos e dos petiscos que Bourdain enfarda são obras primas só por si. Nunca vi comida tão bem filmada - as cores, as texturas, a frescura dos pratos quase que se sentem. Fico sempre com um apetite dos diabos ao ver aquilo, apetece-me comer até aqueles pratos «feitos à base de 90% de malaguetas» que se podem comer num restaurante de comida Schichuan em Queens, New York! Não sei quem são os camera men nem os produtores da série mas são excelentes, sem dúvida alguma. O modo como filmam a comida é, por si só, um tratado de gastronomia e de estética.

Finalmente, last but not the least, ainda temos a personalidade politicamente incorrecta de Bourdain, o que lhe valeu alguns problemas nos states (daí o parental adisory da série). O homem adora comida de rua, encontra roullotes magníficas que não passam pela cabeça de ninguém, não cai no facilitismo de ir apenas aos melhores restaurantes do mainstream, pelo contrário procura o impensável, tem uma aversão sincera à comida vega, está-se nas tintas para os direitos dos animais, não tem maneiras à mesa, come alarvemente (em termos de quantidades), é escatológico... Enfim é um genuíno apaixonado pela comida, alguém que confessa em cada programa que acabou de provar a melhor comida do mundo. E é sincero!

A Sic radical está de parabéns pela divulgação do trabalho de Bourdain em Portugal. E nós, comuns ignorantes das coisas sérias deste mundo, ainda mais que o temos todos os dias mais ou menos à mesma hora.

A Metamorfose de Franz Kafka, por Melquíades


“Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na cama metamorfoseado num monstruoso insecto.” Assim começa o Metamorfose e pouca mais acção há. O livro é pequeno, mais novela que outra coisa, e traduz-se nisto: Gregor Samsa, caixeiro-viajante que se mata a trabalhar para prover à família que adora - pai e mãe, já velhotes e uma irmã novinha -, acorda naquela manhã transformado num nojento e gigantesco insecto. Não pode falar, não pode sair do quarto, não pode fugir; e não maltrata ninguém, uma vez que mantém pensamento humano. Reconhece a família e o mal que lhes está a fazer e a família reconhece o insecto de pesadelo como sendo o filho extremoso, Gregor Samsa.

Mas como é que se vive com a monstruosidade? Esta é a pergunta que logo de início nos salta à cabeça, perante a empatia para com a família do mostrengo. Mas a arte de Kafka leva-nos muito mais além do que isto e a pouco e pouco, passado o susto da fantástica metamorfose, já não sabemos quem é o monstro. Começam a aparecer outras monstruosidades ao longo da Metamorfose. A monstruosidade pode estar em qualquer lado e mesmo no meio de nós. Até o leitor pode ser o monstro. Qualquer de nós se identifica com tudo aquilo. De um lado e de outro. Ali não há preto e branco.

Já li e reli “A Metamorfose” muita vez e descubro-lhe sempre uma nova perspectiva. Em regra tenho simpatia pelo novo Samsa. A sua metamorfose é uma reacção à insanidade e ao vazio em que vivia. Foi o corpo e não a cabeça que lhe disse “Não” à continuação da labuta esgotante, transformando-se naquilo que a impossibilitava, a monstruosidade. Transformado o corpo no mostrengo horrendo que nos é descrito, a cabeça de Samsa continuou como até ali, amorosa, subserviente, escrava. O metamorfoseado monstro é a mais humana das criaturas. A família, aterrada e esgotada, e que nos leva de início a maior fatia de simpatia, vai evoluindo ao longo da história e vai sendo objecto de nova metamorfose.

No final, a cabeça humana do monstro físico Samsa, não aguenta o sofrimento (ou a metamorfose) que provoca na família e suicida-se da única forma que aquele corpo lhe permite. À fome. O monstro repulsivo toma a mais humana das atitudes.

02/12/10

Special 5, por Olé


Mas não tinham proibido as touradas na Catalunha?

01/12/10

Um Palhonço No Panteão Da Eternidade, por Sagrado Coração


Comece-se por dizer que o Palhonço conseguiu e realizou o seu grande sonho, que era ser tido como um pintor famoso e gravar para sempre o seu nome no panteão dos grandes. O artista foi famoso em vida e continua na mesma depois de mal enterrado. Os seus quadros, embora não pertencendo à esfera dos colossos, dizem presente nos mesmos sítios onde aqueles estão. Tais quadros tornaram-se mesmo ícones de uma certa forma de pintar (naif) e de retratar alguns ambientes selváticos, aparecendo muitas reproduções das suas pinturas em capas de Gabriel Garcia Marquez, Luís Sepúlveda e de outros autores que agora não recordo.

O mais engraçado é que o artista famoso sabia de tudo menos de pintura que era a única coisa que fazia. O homem não teve qualquer treino, não assistiu ou acompanhou qualquer mestre, não estudou nada de pintura, não tinha qualquer noção de perspectiva, nem qualquer noção das mais elementares regras da pintura, assim como não sabia desenhar, etc, etc, mas teimava em ser pintor e pintava. E pintor ficou. Falo como é evidente do palhonço Henri Rousseau, O Aduaneiro como ficou conhecido.

Henry Rousseau foi um pequeno funcionário da alfândega de Paris durante 22 anos e até aos 41 anos. Nessa idade e a certa altura meteu na cabeça que queria pintar e ser um pintor famoso. Rousseau nada sabia de pintura para além de saber que a coisa se traduzia basicamente em esfregar pincéis com tinta numa tela. Mas sabia como se meter no meio. Afivelou um jeito de palhonço, de coitadinho, desgraçado e engraçado e lá foi para as tascas parisienses do milieu. E a pintura, a verdadeira pintura, engraçou com ele.

Por conta de copos, piadas e boutades, o bom do Rousseau tornou-se “compagnon de route” de Picasso, Gauguin, Signac, Matisse, Pissarro, Redon, Cézanne e outros, que o acolheram e protegeram, fazendo-o inclusive participar nos seus salões de pintura. É certo que algumas vezes o tentaram meter nas salas das artes decorativas, mas Rousseau desculpava-lhes esses lapsos e acartava os seus quadros para as salas de Picasso e Cézanne. A chacota geral prosseguia nas costas do nabo, mas certo certo, é que ele lá estava lado a lado e ninguém tinha coragem de o tirar dali. E de tanto ali estar, ali ficou. No panteão, ao lado dos grandes, que apenas o receberam como bobo ingénuo e como afronta à pintura oficial e institucional.

Apollinaire, então, adorava o homem e defendia a sua pintura contra tudo e todos. Hoje, o Aduaneiro lá consta em qualquer livro ou compêndio de arte como sendo o expoente da pintura naif e a prova provada de que se pode pintar a realidade “sem a intervenção da razão critica e disciplinadora”. Que de facto, Rousseau não tinha. Mas tem quadros no Louvre, no Hermitage, National Gallery, etc.

Apesar de não saber pintar, Rousseau, homenzinho ridículo e pretensioso, envolvia-se a si próprio numa aura de grandeza que de tão atroz se tornava cómica e apreciada. A certa altura numa das jantas com Picasso e outros, Rousseau vira-se para este e diz-lhe: “ – Nós os dois somos os maiores pintores da nossa época, tu no estilo egípcio e eu no moderno.”. Nem mais.

Mas Rousseau levava-se a sério, tão a sério que distribuía cartões de visita, onde mandou imprimir por debaixo do nome a referência de “Pintor de Arte”. Os seus quadros que mais não querem do que imitar os mestres da época, são na sua maioria de um ridículo alucinado. As figuras são mal desenhadas, não há qualquer noção de perspectiva ou jogo com ela. Há figuras copiadas de caixas de chocolates e mesmo a sua famosa série das pinturas na selva era decalcada por projecção de fotografias. A sensação de mistério e de intranquilidade que transmitem mais não resulta do que da obsessão de Rousseau de acabar e encher os seus quadros até ao limite do insuportável. Cézanne por exemplo fazia-lhe confusão. A certa altura vira-se para Cézanne e diz-lhe: “ – Como sabe, eu podia acabar todos estes quadros.”