16/03/13

O Director de Turma é o grau zero da hierarquia mundial dos Directores, por DDT



O termo Director faz sentido quando se dirige uma empresa (por pequena que seja), um clube de futebol (mesmo que seja o Sporting), um departamento do governo (por incompetente que seja), uma instituição de solidariedade… Mas um Director «de Turma»? Hello! Os dois termos são uma contradição em si: Director parece que puxa para cima, mas depois, acrescenta-se «de Turma» e dá a impressão que estão a gozar connosco

Nos grandes encontros de negócios, os líderes das empresas trocam cartões de identificação entre si – António Lallande, Director da Sonae, Miguel do Vale, Director da CGD, Onésimo Botelho da Silva, Director da Galp… Cai bem não cai? Mas «Manuel dos Santos, Director de Turma»… Não soa bem, arranha… Acho que me desmanchava a rir se alguém se me apresentasse  com um cartão destes. Perdia logo toda a pouca credibilidade. E por escrito, ainda por cima num cartão oficial, Director de Turma soa muito pior do que só dito.

O Director de Turma é uma não-figura, um vazio funcional, um verbo de encher que passa as manhãs a apontar as faltas dos alunos, a justificá-las mesmo quando são injustificáveis, a psicanalisar sem psicanálise pais traumatizados e filhos teimosos e mal educados. O Director de Turma é um padre sem sacramentos nem Espírito Santo, um psiquiatra sem prozac, um sargento sem boina, um polícia sem cassetete. Um nada burocrático tolhido por uma legislação idiota que lhe retira toda e qualquer réstea de autonomia. O DT não decide nada – lê a legislação e discute com os outros verbos de encher que são os colegas DTês as consequências do novo Decreto 768/22 de 12 de Fevereiro que vai corrigir as limitações do 31/23 de 219 de Junho. Um bom Director de Turma é o que sabe esta cantilena mentecapta dos decretos e dos regulamentos e que a aplica escrupulosa e absurdamente. DT é o nome pseudo pomposo que se dá a um desgraçado que não é mais que um mangas de alpaca, um zelota da burocracia. Esta personagem digna de um filme de fantasmas porque não existe nem autonomia tem para decidir não marcar uma reunião. Que são obrigatórias. Que há muito se fazem na escola do lado. Que é o que diz o artigo 18 do Regulamento em conformidade com o decreto 10/879 de 21 de Agosto. Tens de marcar. Mas se não há nada para tratar... Mesmo assim. Marca. É de lei.

Abaixo do Director de Turma só conheço o chefe de turma que agora não se chama assim, mas Delegado de Turma e que é o aluno em quem a turma votou para ir às reuniões ao fim do dia, depois das aulas, e para tirar as fotocópias para os colegas. Tem ainda menos poder que o Director de Turma, decide ainda menos, e nem sequer tem o título Monthy Python de «Director». É só um Delegado. E de «turma», como se não chegasse. O Director de Turma assegura a seriedade e a legalidade do processo da sua eleição, providencia uma acta da coisa em modelo regulamentar, relatório D047 sacado do programa de DTês e anexa com as devidas assinaturas no Dossier de Turma.
 
O Dossier de Turma é o Rigveda do Director de Turma. O seu Alcorão, a sua Tora, o seu livro sagrado… Uma  coisa absurda com centenas de chachadas inúteis. Mas ai do DT que não tiver o seu Dossier em dia… As fotocópias dos horários dos professores. O horário da turma. A hora de atendimento do DT. A caracterização da turma. Os gráficos de queijo e de barras da caracterização da turma. A hermenêutica da caracterização da turma. As folhas com os registos dos contactos com os encarregados de educação. A legislação em vigor devidamente anotada e sublinhada. As justificações de faltas. Os atestados médicos. As transferências. As participações disciplinares. As notas do fim de período de cada um dos 30 alunos. As respectivas avaliações intercalares. A avaliação qualitativa. A avaliação quantitativa. A síntese da avaliação. Os planos de intervenção rápida. Os PIT. Os Nés. As estratégias de remediação. Os planos de diferenciação pedagógica. Os relatórios de actividades. As recuperações de faltas. Os modelos de convocatórias de reuniões. As convocatórias das reuniões. As actas das mesmas. O projecto de educação sexual da turma. O PES. As planificações das disciplinas. Os critérios de avaliação.

Ai do DT cujo Dossier Sagrado não contém todos estes e outros versículos – o Coordenador do Não Sei Quê, o Director dos Directores de Turma (o único verbo de encher que é ainda maior e mais vazio que o DT, o Nada Vezes Nada é Nada das escolas), o Inspector (o Kafka, o cardeal da vacuidade, o zelota mor do absurdo), todos, caem-lhe em cima se, tremam DTês de todo o mundo, «o dossier de turma não estiver em ordem»! E o Director de Turma cumpre o absurdo da sua vida e perde o seu tempo ingloriamente a encher o seu Rigveda de baboseiras sagradas. São mantras, senhor.

Em tempos muito remotos, muito antes de ser director de turma, o director de turma era professor. Era no tempo em que lia livros. Agora lê o diário da república. Dantes falava de Melville, de Hegel e de Eça. Agora discute com o colega DT como é que se consegue sacar do programa de directores de turma, o relatório P056C que traz a preciosa informação de quantas faltas deu o aluno durante o último mês mas apenas das 2 às 4.

Dantes as escolas eram baluartes da cultura. Agora são os últimos lugares do mundo onde se pode ouvir falar de literatura, de filosofia, de ciência, de arte, de história. É mais provável ouvirmos falar destas coisas num bar, numa cervejaria ou numa taberna que numa escola. Agora as salas de profs são salas de Dtês e as conversas versam as últimas novidades do diário da república.

Dantes um professor de português não podia confessar que nunca lera Camilo. Agora o Amor de Perdição é banido da escola, para gáudio de DTês que nunca o leram mas que já não têm vergonha em confessá-lo. Dantes falava-se português; agora vomita-se eduquês. Dantes usava-se adjectivos, substantivos, verbos e pronomes. Agora debita-se siglas – Pits, Pes, Nees, Pzeros… 

Tenho vergonha daquilo em que se tornou a escola, um sítio onde não interessa nem o que se ensina nem o que se aprende mas apenas se a papelada acéfala está em ordem e se os ex-profs, actuais DTês, estão a massacrar-se o suficiente em reuniões bacocas para preparar novas reuniões preparatórias das próximas reuniões.

Quando é que tudo isto começou? Acho que foi quando, um dia, um senhor mandão se lembrou de meter os profs a registar as faltas dos alunos e a fazer matrículas – assim poupavam-se os ordenados dos funcionários que seriam necessários para essas tarefas. E de tarefa em tarefa, a burocracia é hoje a principal função de um professor. Acho que foi esse mesmo senhor mandão que inventou a designação de Director de Turma… Era esperto, o senhor, e tinha um óptimo sentido de humor – se dissermos ao arrumador de automóveis que ele é um Técnico Profissional de Manutenção Urbana, o homem fica muito mais contente. Mas a esse, ainda lhe dão um boné e, às vezes, até uma farda catita. Ao DT, nem isso. Mas fica-lhe o título, como a um nobre arruinado – «muito prazer, Manuel da Silva, Director de turma».

1 comentário:

Anónimo disse...

Agora essas tarefas já nem fazem parte da componente letiva...estamos tramados