27/04/05

"O cliente em sempre razão, made in USA. Por Mangas

A propósito do post do Manelinho veio-me à memória uma situação semelhante pela qual passei no verão de 94, em Flint, Michigan. Devo dizer que neste aspecto das reclamações em estabelecimentos comerciais, sejam eles restaurantes, lojas de vestuário ou animais decorativos, os americanos, (de acordo com a minha experiência), têm uma concepção muito pragmática de resolver as situações com o mínimo desgaste possível para o cliente e sempre na perspectiva de evitar males maiores para a loja – processos judiciais que, para além de serem péssima publicidade, podem acarretar grossas indemnizações. Por isso, deitam-se ao chão, literalmente! Têm, atrevo-me a dizer e sem excepção, em cada loja, um departamento vocacionado para atender as reclamações dos clientes e fazem-no não como se nos estivessem a prestar um favor, mas com aquele sorriso colgate para amansar os espíritos reclamantes mais incendiados.

Assisti a várias situações destas. Não há ali trombas, ou “o senhor não se soube explicar no pedido que efectuou”, ou “não podemos trocar porque o produto já foi usado”, ou desculpas burocráticas de quem quer salvar uns cobres ao patrão. Nada disso. Vê-se que aquele pessoal sabe o que está a fazer, tem a lição bem estudada porque certamente teve formação específica, sabe de relações humanas, tem meios para accionar com a maior brevidade possível os mecanismos que compensem o prejuízo de quem reclama, salvaguardem a credibilidade do estabelecimento e devolvam a satisfação ao cliente. O cliente tem sempre razão, nunca me pareceu mais verdade do que ali.

Penso que muitos factores estarão subjacentes a esta filosofia de transacção/assistência que não se esgota quando o produto ou bem é vendido. Ocorrem-me dois: a competição feroz do mercado americano e o quanto ele é fértil em exemplos de avultadas indemnizações, porque sim, porque o cliente tinha legitimidade na sua reclamação e a razão estava do seu lado, ou por toma lá aquele palha, e afinal o manual de instruções do micro-ondas não dizia nada sobre os efeitos da sua utilização em gatos vivos ou porque a Philip Morris não advertiu por escrito que o Marlboro pode provocar cancro da laringe.

A minha única experiência. Uma bela tarde a caminho de casa, paro no Rally`s Hamburger, - os melhores hamburgers americanos! -, peço um combinado com batatas fritas e coca-cola, instalo-me confortavelmente no sofá para ver o Brasil-Suécia na televisão para o campeonato do mundo 94, dou a primeira trincadela no hamburger e sabe-me a sal. Excessivamente salgado. Porra! Dou o benefício da dúvida, abocanho mais uma vez e sabe-me a salgado novamente! Na América sê americano, pensei, agarro no cupão que vinha dentro do saco, ligo o número grátis de reclamações, atendem-me de Kentucky, explico o que se passou à operadora de serviço, esta ouve-me até ao fim, desfaz-se em amabilidades e desculpas, pergunta-me que pedido tinha eu feito, pede-me a minha direcção e a localização do Rally`s onde fiz a compra. Diz-me que iria imediatamente entrar em contacto com a loja e em breve receberia notícias. Ponto final. Não dei mais importância ao assunto, era só um hamburgeur afinal de contas, mas passados exactamente dois dias recebo uma carta no correio que guardo até hoje e passo a transcrever:

« To :Mr. F.
Endereço, Flint, Michigan

Dear Mr. F:
Obrigado por ter despendido do seu tempo para telefonar para o nosso Courtesy Department com os seus comentários. Sem sombra de dúvida, a parte mais frustrante do meu trabalho é quando ouço que um Cliente teve uma experiência menos que perfeita num dos nossos restaurantes.

A filosofia do Rally`s é servir os nossos Clientes sempre com a mais elevada qualidade, produtos frescos, de forma rápida e cortês. Graças aos nossos altos standards de exigência, tornamo-nos no #1 na indústria do fast food, em três áreas que são as mais críticas para o nosso sucesso: valor, qualidade e serviço.

Por favor, permita-me endereçar-lhe as minhas mais sinceras desculpas pelo pedido insatisfatório que recebeu. Ainda que a sua chamada tenha sido atendida pela Connie do nosso Courtesy Dept., posso assegurar-lhe que cada um e todos os níveis responsáveis pela gestão do nosso restaurante em Flint, já receberam uma cópia com os seus comentários. Quando receber esta carta, todos esses níveis de gestão já tomaram medidas para corrigir os problemas que o senhor encontrou.

Quando regressar ao nosso restaurante em Flint, se a sua visita não estiver ao nível das suas exigências, por favor telefone-nos novamente. Sem este tipo de feedback, muitos “serious issues”, não seriam detectáveis. Obrigado pela sua preocupação e por ser uma parte grande e importante do nosso sucesso!

Sincerely,
David Peterman, Executive Vice President Operations
Endereço, Louisville, Ky, 40223, (502) 245-8900 »

Resta acrescentar que junto vinha um cheque-vale para o Rally`s no valor do pedido que eu tinha feito dois dias antes. Simpático, breve, eficaz. E nunca deixei de ir ao Rally`s que tinha umas óptimas batatas fritas com pele. Nesta conjuntura de reclamações e atendimento, ficavas tu sem escrever um único Tratado Taurino, Chibanga...!

21/04/05

A Abominação, por J Panhanganana

Respondendo então à vaga de fundo que foi gerada nesse sentido, avanço então com o meu elo para a tal “cadeia de literatura” que nos foi transmitida pelo estimado cliente e amigo riacho). Acho que a ideia é falar um bocado de livros, a propósito de um inquérito do tipo dos que são feitos pelos «jornais em Agosto quando não têm assunto nenhum». De resto e para voltar a citar o irmão dervixe rodopiante (1), cognominado “O boé da giro” (2), que afirmou em sede própria «abominar» tal prática, visto que «as perguntas são incongruentes e simplistas e as respostas só podem ser a condizer». A opinião do mestre, no entanto, é plena de duplicidade, sinal da sua imensa sabedoria e complexidade. Assim, não só pactuou naquela outra instância com a abominação (3), como incentivou à sua multiplicação (4) e, já nesta instância, à sua descentralização (5). Assim se cumpre aqui o seu misterioso desígnio.:

Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
– A resposta gira seria o próprio Fahrenheit 451, que não é de todo descabido pela mensagem e qualidade da obra. Mas a sério, se tivesse que me tornar um livro encornava a última edição da Enciclopédia Britânica.
Já alguma vez ficaste apanhadinha(o) por um personagem de ficção?
– Apanhadinho, apanhadinho, acho que não. O mais próximo talvez seja o Corto Maltese, esse herói carismático, aventureiro, místico e Cavalheiro da Fortuna, eterno romântico galante dos sete mares. Por outro lado perturbaram-me, durante algum tempo, personagens estranhos como Mersault ou Gregor Samsa Em miúdo sim, aí fiquei apanhadinho por muitos, do Conan ao Vickie, o Tarzan, o Robin dos Bosques (Errol Flyn), o David Crocket, etc..
Qual foi o último livro que compraste?
- “Aventuras do Capitão Hatteras”. Último volume da colecção Júlio Verne do Público.
Qual o último livro que leste?
– Até ao fim, “The historical figure of Jesus”, de EP Sanders.
Que livros estás a ler?
– Nos intervalos dos jornais e das revistas, releio “O Nome da Rosa”, Umberto Eco. Em ritmo mais lento um livro sobre o Caravaggio, de Gilles Lambert. E, a propósito de poste recente no tapor, atirei-me finalmente ao calhamaço “Os Criadores” (Uma história dos Heróis da Imaginação), de Daniel J. Boorstin.
Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?
- Aquelas opções práticas que o irmão dervixe rodopiante mencionou na tasca do riacho (obras sobre carpintaria, técnicas de sobrevivência, etc). Mas levava o D. Quixote, sim senhor, e mais alguns que ainda não li, como o sempre referido Ulisses, a Íliada e a Odisseia numa tradução decente (parece que a última em português é muito boa), O Livro do Desassossego, o USA do John dos Passos, e talvez uma coisa mais espiritual, tipo Siddharta do Herman Hesse, que tenho mas nunca calhou ler.
A quem vais passar este testemunho (3 pessoas) e porquê?
- Não sei.

De modo que é assim.

(1) «Ó Riacho este teu desafio ao Tapor acho que não vai surtir grande efeito por lá. Não sei se algum de nós tem vontade de postar com isto. Eu por mim abomino este tipo de coisas. Isto fazem os jornais em Agosto quando não têm assunto nenhum. As perguntas são incongruentes e simplistas e as respostas só podem ser a condizer. Perguntar por exemplo quais eram os cinco livros que levaria para uma ilha deserta só me levaria a responder que levaria os seguintes:1º- Manual do Escuteiro Mirim de Como fazer Fogo a partir de paus e pedras.2º- Guia de Sobrevivência do soldado ou de como pescar com as mãos e caçar com paus.3º- Elucidário botânico de como identificar as bagas, plantas e frutos comestíveis.4º- A Carpintaria prática em 10 lições ou de como fazer uma barracas com paus e folhas.5º- Simposium de farmacologia natural a partir das plantas.E se me fosse permitido um sexto livrito ainda seguia o fabuloso: Faça a Sua própria jangada em 5 lições.DervixeRodopiante (in http://alfa-e-omega.blogspot.com/ aos 04.21.05 - 6:52 am

(2) «Este Dervixe é boé da giro...Mefi»Anonymous (in
http://alfa-e-omega.blogspot.com/ aos04.21.05 - 12:52 pm)

(3) «Agora se para uma estância de férias de luxo na praia, com comida e bebida ao lado e um serviçal atento para o resto da vida onde iria penar durante 1 anito por exemplo e só me fosse permitido levar 5 livros então acho que levaria os seguintes:1º- Ulisses, de James Joyce2º- Cem Anos de Solidão, de Gabriel García-Marquez,3º- Viagem ao Fim da Noite, de Céline4º- Conversa na Catedral, de Mário Vargas-Lhosa5º- Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes»DervixeRodopiante (in
http://alfa-e-omega.blogspot.com/, aos 04.21.05 - 6:58 am»

(4) «Ó Simplesmente Nhanha vai é lá ao Tapor cumprir a corrente da Riacho. E mal por mal, sempre se fala de livros que é sempre bem.E agora que falo nisso há dois outros fundamentais que também tinham que ir: A Bíblia e o Paraíso Perdido do John Milton.»Dervixe (in
http://alfa-e-omega.blogspot.com/ aos 04.21.05 - 12:00 pm)

(5) «Ó Panahanahgnaha tu é que eras gajo catita para responder ao desafio da Riacho. Mete poste sobre isto, que eu no blog dela já respondi por mim.»Dervixe (in http://www.tapornumporco.blogspot.com/ aos 04.21.05 - 12:13 pm

16/04/05

Prosa Pós Profes, por Profe (Jocta) Panhanha phd em reportáge

Movido por um misto de curiosidade pessoal e profissional, ontem ao fim da tarde fui ouvir o profe Marcelo Rebelo de Sousa, ao Casino da Figueira da Foz. O homem veio encerrar umas jornadas da Associação de Jovens Advogados do Centro e do Arquivo da UC. Veio falar das suas memórias de professor universitário de Direito, sobretudo na alma mater Universidade de Lisboa (UL), onde se formou a rebentar a escala, se doutorou em Ciências Jurídico-Políticas e é hoje professor catedrático. Não dei o tempo por perdido. O profe, perito em sínteses e em cativar audiências, discorreu durante cerca de uma hora em grande aceleração verbal pelo seu passado de, precisamente: profe. Desde os princípios dos anos 70, passando por uma revolução («tive a felicidade de ter podido viver uma revolução aos 23 anos, é a melhor altura da vida para se viver uma revolução», disse Marcelo com saudades) e atravessando estas três décadas democráticas. Não se falou de política (pelo menos directamente), não se falou do Expresso nem das dezenas de livros que produziu, nem das obras jurídicas. Foi sobretudo em torno da sua experiência enquanto professor, professor e comunicador por vocação e distinção. Uma aula que o magnífico gongórico Rui de Alarcão apelidou, extasiado, de «magnificente» no final. A sério. Fez uma breve regressão a um passado mais fundo da vida, no início, para dar contexto familiar à vocação, e ao convívio íntimo do pai com Marcelo Caetano, que já em criança lhe despertava a vontade de ser quando fosse grande «professor catedrático».
Fait divers: Marcelo Caetano não foi padrinho de baptismo do profe, apesar de convidado pelo pai Baltazar, invocando uma questão de princípio para recusar: Os padrinhos não devem ser mais velhos que os pais, para poderem estar lá em apoio do afilhado quando os pais falecerem, em princípio mais cedo. A sério.
Marcelo, liberal e pró-democrata apesar das simpatias familiares, foi sintomaticamente dos poucos profes, na altura assistente, a não ser saneado pelos comités revolucionários, sobretudo estudantis, que tomaram conta do poder nas universidades após o 25 de Abril. Se a de Coimbra foi tomada pelos comunistas, apesar de tudo uma malta mais “soft”, da UEC, na UL venceram os radicais maoistas do MRPP, gente de gadelha sebenta até aos mamilos adepta do livrinho vermelho chinês, como Durão Barroso ou Ana Gomes na vanguarda em Direito. Na UL foi quase tudo varrido dos corpos docentes, já que eram raros os que não tinham colaborado com o regime anterior, seja como membros de governos, seja como procuradores das câmaras corporativas, etc. Em Direito só ficaram três, um deles Marcelo. O outro, Marcelo, foi para o Brasil. Em suma, o profe saiu também por solidariedade para com os saneados, mas achou, ou pelo menos é assim que hoje sente esse passado, aquilo tudo uma grande excitação! O homem é de facto uma força da natureza e faz lembrar uma mosca, atenta e rapidíssima, sem perder a compostura, o charme e a simpatia. Depois é enciclopédico, e até as maiores banalidades lhe saem com brilho e graça. Um predestinado da docência com um currículo de 350 páginas. «Os fins de regime são sempre esteticamente bonitos», esta frase foi uma das poucas que acabei por registar no bloco, a velocidade do discurso tornava quase impossível a tarefa e a partir de um certo ponto deixou de me interessar a caneta e o bloco, fiquei absorto e tentei registar com a memória. Aqui vos deixo um cheirinho, só para dar nota da análise que o profe faz, nestes trinta anos de ensino, às diferentes gerações de alunos que lhe têm passado pelas salas de aula. A partir dos anos 90 foi sempre a descer. Primeiro, ao contrário do espírito mais solidário que se vivia entre os estudantes nos anos 70 ou 80, começou a imperar a parir daí o individualismo feroz, fruto de uma concorrência que já se fazia antever de um mercado de trabalho cada vez mais esgotado, começaram aí os principais e primeiros problemas de acesso de licenciados ao emprego. «Cada qual por si e Deus por todos e, para os não católicos, ninguém por ninguém», seria genericamente o lema. Depois começou a instalar-se rapidamente a mancha negra da ignorância, boi que o profe não quis chamar pelo nome, relativizando o fenómeno com o excesso de informação que lhes entra hoje nas cabecinhas: «Não têm tempo para gerir tanta informação, há menos qualidade». Por um lado uma crescente incapacidade de perceberem um conceito abstracto, que tem de ser explicado tim tim por tim tim como se explicam coisas às crianças, e acima de tudo como se toda a anterior escolaridade tivesse desaparecido por um vórtex ao fundo do cerebelo, por outro graves lacunas culturais e educacionais de base. «Grandes buracos formativos de base», nas palavras do profe, que ainda não se habituou ao tratamento de polé que é dado, mesmo pelos melhores alunos do curso, à língua portuguesa. Isso, ou um confrangedor desconhecimento sobre história, em localizar e explicar factos e pessoas no passado. «Não têm, por exemplo, noção do que era o país antes do 25 de Abril, não percebem, é outro mundo (…) Passámos a ter de explicar coisas óbvias, têm uma dificuldade enorme de conceptualizar, não sabem lidar com conceitos. Mesmo os melhores alunos têm lacunas em coisas muito sérias», admite Marcelo num lamento, mais sofrido pela crescente falta de respeito pelos mais velhos e pelos profes em geral. Incluindo as instituições. Comparou a esse propósito visitas que faz com alunos a Belém, e as respectivas atitudes, com gerações anteriores. Estas últimas compostas, curiosas e respeitosas. Hoje em dia entram em cena num perfeito circo infantil e desbocado, espalhando-se de imediato, qual bando de pardais à solta, pelos recantos mais sombrios dos jardins do palácio cor-de-rosa para «namorar». Depois de muita trabalheira a arrebanhar os quase “doutores” de Direito, explica o profe, lá entram, e por regra ignoram completamente as prelecções (algumas interessantíssimas, garante o profe, sobretudo com Soares) do Presidente, e alguns até vão remexer na secretária de trabalho do PR virando decretos para promulgar e objectos pessoais. Retive, enfim, uma frase do profe a propósito da degradação do ambiente familiar neste país stressado, citando o desabafo de uma aluna, a quem aconselhava apoio entre a família: «Sabe sôtor, a casa é um bocadinho uma paragem de autocarro, temos todos horários diferentes e falamos pouco». Não há tempo. Os pais e os profes têm cada vez menos tempo, interesse ou autoridade e estamos a fazer um país de idiotas funcionais.