24/05/06

A Epopeia Americana, parte 5ª: «Apocalypse Now», ou The End. Por Mangas

Introdução - O livro de referência ao filme de Francis Ford Coppola é o Coração das Trevas do escritor Joseph Conrad. O argumento foi escrito em parceria por John Milius e o próprio Coppola. Entre o projecto inicial e a obra acabada, ocorreu uma documentada saga de factos e lendas que asseguraram ao realizador a sua conta de inferno privado e transformaram a experiência limite da rodagem do filme num verdadeiro apocalipse dentro de outro. Tal não é para aqui chamado. Até porque à imagem do conceito original, um e outro, já fizeram correr rios de tinta e foram tema de profundas e exaustivas análises. Arrisco-me a dizer que cada sequência ou personagem dariam leit-motif para outros tantos textos iguais a este. A nós, e perante o sagrado, cumpre-nos tão-somente sublimar a paixão e fechar um ciclo – perdoai-nos, desde já, a extensão da prosa. Para tal, alternaremos a interpretação de cariz pessoal entre o livro e o filme com base em Kurtz e Marlow/Willard, porque os entendemos de relevância central no desenrolar da história. A América deve ser vista como cenário de fundo e simultaneamente personagem principal. Poderá ser lido ao som de Run Through the Jungle, dos Creedence Clearwater Revival.

Kilgore: Se eu digo que é seguro surfar nesta praia, é porque é seguro surfar nesta praia! Eu não tenho medo de surfar aqui e vou surfar nesta merda deste lugar todo! Apocalypse Now é um filme de helicópteros. O zumbido metálico das hélices em slow-motion sonora são o palpitar angustiado de um coração que perdeu o rumo, prestes a desferir um ataque mortal que nos tira dali para fora, do inferno para os céus, dos corpos esfacelados para o azul sobre os arrozais vulneráveis e pacíficos. É um filme sobre a América dos símbolos, desde as coelhinhas Play Boy ao surf, passando pelos The Doors à marijuana. A bestialidade colectiva e individual inerente a um campo de batalha, os abismos da alma humana e, a selva, são paradoxos, contemplações estéticas e analíticas em torno de um rio e o barco que o percorre naquela que é a mais perturbadora viagem ao fulcro da esventrada nação Americana no auge da guerra do Vietname.

Marlow: Mas a selva acabou por denunciá-lo e vingar-se terrivelmente dele e da invasão fantástica. (...) Ecoou muito fundo, porque o sr. Kurtz estava oco... O Coração das Trevas é um grande livro. Um dos melhores! De escrita delicada, bela e visceral. Quando estamos perante ele a primeira vez e não sabemos em que direcção nos empurra a corrente das palavras, a suspeita de que algo não bate certo com Kurtz instala-se logo na pág. 22 ao lermos: «Só ele manda mais marfim do que todos os outros juntos...» Há ali método. Compulsão. Obsessão. Génio. Não é apenas mais investimento do que os outros, não. Na África profunda daquele tempo, tamanha produtividade só poderia render dividendos se sustentada por processos, lógica e determinação, logo, a filosofia de Kurtz deveria obedecer a um plano para além da subjugação pela força, pelo poder. A explicação é-nos concedida muito mais tarde pelo próprio Marlow: «A questão estava em ele ser um homem de qualidade, e entre todos os seus dotes predominar um, ligado ao sentido de efectiva presença, que era o talento de falar, eram as suas palavras – o perturbante dote de expressão, o estonteante, o iluminante, mais exaltado e também o mais miserável, a palpitante corrente de luz ou o ilusório fluxo extraído ao coração de uma indevassável treva.» O Kurtz de Joseph Conrad, é um indivíduo ambíguo, complexo, dotado para as artes, líder nato, íntegro mas perigoso o suficiente para se auto-exilar das convenções colonialistas do Império. Por isso tomba e no ponto de ruptura, toca o abismo sem remissão.

Fotojornalista sobre Kurtz: O homem tem uma mente lúcida, mas a sua alma está louca! Noutro paralelo, a primeira imagem que nos é dada a testemunhar sobre o Kurtz de Coppola, é a sua voz. «Vi um caracol a arrastar-se sobre o fio de uma navalha. É esse o meu sonho. É esse o meu pesadelo. A deslizar, a escorregar no fio de uma navalha... e sobreviver...» A gutural nasalação de Brando gravada numa cassete. Pausada. Sonâmbula. Num arrastado timbre de lucidez demencial e convicção trágica. Willard (Martin Sheen), apercebe-se que aquele não é um homem qualquer. Em nós espectadores, cresce a suspeita convicção de que a ténue linha que enjaulava a loucura, foi violada – o fascínio é completo! Se confrontado, por exemplo, com Ringo Kid, o herói onde Ford sustenta o nascimento da nação, e assumindo as convicções diametralmente opostas de ambos, sobra-nos a esperança de um e a desilusão de outro. De comum, ambos são produtos da mesma pátria, a América mãe democrática da ilusão e do desencanto, da construção e da destruição inapelável de homens e sonhos, do nascimento à morte. Equação trágica esta a de uma nação que alimenta filhos e, de forma voraz, se alimenta dos irmãos dos filhos como se fossem bastardos. Será este Kurtz/Buda/Brando a América gorda, sem ideal, sem futuro, sem dignidade e sem moral, ou o único a possuir terrível esclarecimento e pragmática lucidez no meio de toda aquela insanidade?

Chef: Eu sou de New Orleans e fui criado para ser um grande saucier! Internamente, na década de 60, a América geria a questão racial, os confrontos étnicos nas grandes cidades, os sucessivos ataques de corda e archote do KKK aos activistas dos direitos humanos no Mississipi. E quando Lyndon Johnson acalentava o sonho das reformas sociais capazes de construir a Grande Sociedade, o confronto armado no Vietname rebentou-lhe nas mãos – a guitarra de Hendrix não sangrava o Star Spangled Banner apenas fora de casa. Longo caminho tiveram de percorrer Ringo e Dallas na diligência da esperança, os Jods na velha camioneta do desencanto, Dennis Hopper e duas gerações dos Fonda nas Harleys ao vento, o Capt. Kilgore nos helicópteros todos poderosos sobre a guerra do absurdo. A cavalaria que dominou o deserto do Arizona com carabinas de repetição, levou um século a conquistar os céus do Vietname com napalm, naquela que foi a maior derrota da história expansionista americana. Do Monument Valley à terra queimada de Saigão. Das raízes à epopeia fracassada da América no Mundo exterior

Willard: Uma parte de mim tinha medo do que iria encontrar e o que iria fazer quando lá chegasse. Eu conhecia os riscos, ou imaginava que os conhecia. Mas o que eu senti com maior intensidade, e se sobrepunha ao medo, foi o desejo de o confrontar. Mas há sempre uma metáfora. A própria América é uma metáfora poderosa de estrelas azul cintilante e listas cor de sangue. Cinco homens num barco subindo o rio Nung em busca da ovelha tresmalhada do rebanho. Neste tempo de matança, quer os perigos inerentes à viagem, quer as deambulações em torno da (ir)racionalidade da operação e da máquina que a sustém, são sinais claros das trevas em vigília e do seu território, físico/material e emocional/espiritual - a selva e o coração, o corpo e a mente. Kilgore (Robert Duvall), é provocação externa às manifestações pacifistas de Washington, o belicismo devastador do Uncle Sam unido por laços de afecto com a Morte com a qual não faz concessões nem prisioneiros. «Chalie don`t surf!» e Wagner são personal statements de patriotismo absolutista e grandiloquência psicopata. No mercy! e estilo, de mãos dadas na vingança de Custer. “Kill” em “gore” operático. Por oposição, Willard é a consciência do Capitão, ou o que resta dela e da sua contrição de pecado. E é a descoberta de si mesmo ao encontrar Kurtz – o rosto da loucura comum – o que transcende a personagem de Willard. Na realidade, ele foi porque o empurraram, porque lhe deram o treino e a prática da caça ao homem, porque se ficasse a única coisa que tinha como adquirida era um lar que já não lhe pertencia na América que perdera, um punho cortado contra o seu próprio fantasma reflectido e... «Saigon... Shit... Im still in Saigon...». Quanto a Kurtz, à sua maneira, foi um David Livingstone green barret que lia T. S. Eliott, o missionário filmado na penumbra que superou a Bíblia pela M-16, destruiu os inimigos pelo culto da guerrilha e difundiu o evangelho da aniquilação como factor imprescindível de sobrevivência, adiantando-se, pelo processo, à História com a qual aprendera que a força mobilizadora que adora a um Deus é tão mais eficaz quanto sangrenta; Willard que lhe foi no encalço, confere-lhe a revelação ao mundo, como Henry Stanley antes dele na busca pessoal de um objecto, o espelho e a metamorfose, o encontro e a resolução, o carrasco e o assassino, na essência, a mesma América unida pelo mesmo destino – a obrigação de matar!

Kurtz: Se eu tivesse dez divisões daqueles homens, os nossos problemas aqui desapareceriam num instante. A abordagem de Coppola ao romance de Conrad, é em muitos aspectos, tremendamente fidedigna e de transcrição, como o retrato do primitivismo nativo no ataque com setas ao barco. O desenlace final, contudo, é proposto de forma estruturalmente diferente pelo cineasta americano. O Marlow de Conrad subiu o rio com a intenção de trazer Kurtz de volta a casa. Tal propósito revelou-se impossível de concretizar e empurrado pela força dos acontecimentos que o ultrapassaram desde o primeiro encontro entre ambos, regressa à «cidade sepulcral» com uma maço de cartas e a fotografia da Prometida. De tudo o que ficou após esse encontro emocional entre Marlow e a rapariga, prevalece a imortalização de Kurtz após a morte, «Por isso permaneci fiel a Kurtz até ao último instante, ou para além dele (...)»; e perante a insistência dela em lhe repetir as suas últimas palavras, Marlow, por instantes breves, domesticou «O horror! O horror!» - as verdadeiras últimas palavras de Kurtz que ainda lhe ecoavam na mente - e fabricou a memória: «- A última palavra que ele disse foi – o seu nome.» Por sua vez Willard, ao contrário de Marlow, subiu o rio com o propósito específico de eliminar Kurtz. Em Apocalypse Now, Coppola subjuga a imortalização de Kurtz ao ritual do sacrifício. A entrega sem resistência aos golpes de machete, a queda digna do soldado às mãos de outro soldado, «Tu não tens o direito de me julgar... Tens o direito de me matar...», dir-lhe-á Kurtz. West Point tombada por terra às mãos de um ex-operacional da CIA. A casa dividida. Abel e Caim. Ou o inimigo interno quando há algo de poder no meu Reino. Missão cumprida para ambos. Dessa forma, a solução encontrada por Coppola para o final do filme... é nenhuma. Quer dizer, o factual é tragicamente harmonioso e, o após, é de múltiplas leituras. A sucessão no trono não tem retorno quando após o abate de Kurtz, Willard lança por terra o machete e é prontamente imitado pelos nativos – os pacifistas de Washington teriam rejubilado!

Willard: Um dia esta guerra vai acabar. E isso vai ser óptimo para estes rapazes do barco. Não procuram nada mais do que um caminho para casa. O problema é que eu estive lá e sei que esse lugar já não existe. Willard, como a América dos veteranos, não será nunca um integrado social, como tão pouco foi soldado de pelotão. Nunca assistimos ao seu regresso ao lar divorciado, mas talvez o encontremos nas canções de Bruce Springsteen sobre os desempregados das fábricas de aço na Pennsylvania ou os homeless de New Jersey. Jamais o reencontraremos na pele de super-herói Rambo na cruzada dos mísseis de Reagan sobre a Líbia, dando voz ao “America Is Back!”; mas talvez voltemos por ele com O Caçador, de Michael Cimmino. Com o testamento de Kurtz numa mão e Lance o surfista na outra, como se conduzisse uma criança a quem mostra um novo rumo após a expiação do Mal, o ecrã fecha-se com a sua partida pelo rio que o trouxe. Para trás fica o fim e o começo da última viagem. São sons surrealistas de sintetizadores metálicos, frios, arrepiantes e desconexos que completam o final da banda sonora no desaparecimento de Willard por entre a chuva e a bruma do rio. O mergulho final nas trevas, sucede à abertura explosiva de verde, azul, luz e chamas com que começou o filme. Quase nos apetece ir em busca, outra vez, da voz de Jim Morrison para atenuar o desconforto na cadeira.

This is the end, beautiful friend. This is the end, my only friend, the end. Of our elaborate plans, the end. Of everything that stands, the end. No safety or surprise, the end. I'll never look into your eyes...again.

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