23/06/06

Em Defesa de Saraiva e Contra os Novos Índices, por Torquemada

A evolução das sociedades contemporâneas no sentido da democracia e do progresso fez-se à custa de um dado fundamental: a massificação do conhecimento. O controle do conhecimento e dos seus meios de divulgação foi o mecanismo desesperado que os regimes absolutistas usaram, durante séculos, para se perpetuarem. Tornar limitado o conhecimento foi o principal alicerce da tirania. Com a revolução industrial, e depois com a revolução francesa, institui-se a ideia de progresso como motor das sociedades. A modernização é um imperativo político e o poder absoluto encara assim o seu dilema fatal: modernizar implica a promoção da sociedade do conhecimento e esta é incompatível com a tirania porque, simplesmente, não há conhecimento sem crítica e sem a afirmação da soberania do sujeito. Daí que os liberais oitocentistas declarassem a instrução pública e a imprensa como alicerces da liberdade, ao mesmo tempo que, com toda a razão, denunciavam a ignorância como a base do despotismo. Os regimes antidemocráticos, por isto, sempre promoveram a ignorância e caíram, inevitavelmente diga-se, porque a História os forçou a investirem no conhecimento e na promoção do saber. O regime salazarista, por exemplo, sentenciou-se quando Veiga Simão assumiu a pasta da Educação.

O Index inquisitorial e a censura fascista tornaram-se remotas memórias com a democracia para nós tardia. Aparentemente, só aparentemente. A verdade é que, actualmente, vemos que já não é o poder que depende da opinião pública, mas esta tornou-se algo de volátil, amorfo, manipulável e indefinido. Fragmentaram-se as multidões, já não se vê o poder das massas, nem há receio da rua. A rua está domesticada. Não há violência. Anatemizou-se a principal arma de conquista dos direitos cívicos: o protesto nas ruas, a violência urbana, o panfletarismo, o agit-prop, o cartaz, a pintura mural. A rua é um espaço asséptico e disciplinado.

E, no entanto, a restrição à liberdade e ao conhecimento persiste ou desenvolve-se sob novas formas. Perdoem-me o alongado intróito, mas perceberão como é necessário e ínfimo quando comparado com a indignação que hoje senti.

Hoje, fui à livraria Bertrand em busca de um ensaio de António José Saraiva, «Maio e a Crise da Civilização Burguesa», escrito em 1970 e agora republicado. Procurei naquela sucursal da Bertrand que é apresentada como a maior do país, no centro comercial Dolce Vita. Não encontrei e pedi ajuda. O senhor que me atendeu procurou e procurou no computador e nada. Perguntou-me se eu tinha a certeza do autor e do título. Confirmei os dados. Procurou e voltou a procurar e nada. Perguntou-me se eu sabia qual era a editora. Respondi-lhe que não sabia, mas aventei a possibilidade da Europa-América. Não era, é a Gradiva, mas isso é o que menos interessa. Nisto, o homenzinho, sim tornou-se um homenzinho, sorriu repentinamente e disse: «Nós não trabalhamos com a Europa-América!» Eu fiquei abismado. E insisti:

- Então … não há António José Saraiva…?

- Pois, nós cortámos relações com essa editora e agora não temos os livros deles!

Incrível. Tudo é incrível! A passividade e a alegria idiota com que o homenzinho me anunciava o que deveria ter vergonha de anunciar. Incrível a política da Bertrand. Inaceitável a decisão. Censória e atentatória a decisão de ostracizar as obras de Saraiva, um dos mais importantes intelectuais portugueses do século, só porque a livraria está de relações cortadas com a presumível editora! E ninguém diz nada? Não há regras? Isto é censura! Isto é pior do que as caricaturas dinamarquesas! Isto é restrição ao conhecimento e à livre circulação de ideias! Isto é um atentado à liberdade de expressão! É um novo índex promovido por razões comerciais, por amuos entre administradores. Que fazer, em face disto? Eu respondo-vos como respondi ao gerente da Bertrand que entretanto se abeirou:

- Felizmente há FNAC!

Sem comentários: