Acompanho com emoção a operação de salvamento dos 33 mineiros no Chile. É um acontecimento histórico, uma tragédia contemporânea vivida em directo que nos confronta com os nossos sentimentos mais básicos e profundos. Acompanho estas imagens com o mesmo sentimento com que vivi - recordo-me vagamente - os regressos dos astronautas das missões Apolo que voltavam da lua. É a mesma sensação - ver os mesmos seres humanos devolvidos à terra/casa depois de tanto tempo perdidos, literalmente, noutro mundo (no espaço, na lua ou no fundo de uma mina).
Sinto outra vaga parecença entre os dois acontecimentos quando contemplo o fundo da mina filmado em más condições. As imagens cortadas, as interferências,as cores esbatidas, como se fossem uma ficção de Júlio Verne (Viagem ao Centro da Terra?) filmada pelos irmãos Meliés, tudo aqui faz lembrar os movimentos lentos dos astronautas, perdidos num deserto preto e branco de pó e de rocha. O fundo da mina também parece outro mundo, um mundo inóspito de rochas e breu como a lua de Armstrong e de Aldrin, mas sem as estrelas do firmamento.
Como é possível não olhar para esses/estes homens como heróis? Eles representam o nosso triunfo (raro, momentâneo, efémero)sobre a adversidade, o triunfo de seres tão frágeis sobre a estranheza da imensidão cósmica. E o facto de serem mineiros, derradeiros heróis proletários,que têm que ir onde nenhuma máquina pode ir, símbolos, também por isso, da pequenez e da profunda fragilidade de todos os homens, ainda agudiza mais a dimensão épica da sua odisseia. Mineiros e astronautas, parentes próximos...
Também há coincidências simbólicas:a Fénix, nome da cápsula de salvamento dos mineiros, tem a forma de um foguetão. Embora se desloque, ao contrário dos foguetes espaciais, de cima para baixo e só depois de baixo para cima. Nas Apolo os homens vinham do céu, aqui são salvos das profundezas. Nas Apolo tratava-se de os fazer descer com segurança, agora o problema foi fazê-los subir.
Existem outras semelhanças: ao verem a Terra do espaço, um ponto pequeno a milhares de quilómetros de distância, os vários astronautas fizeram sempre notar que do espaço não se percebem as divisões entre os seres humanos. Vistos de longe não pensamos nos terrestres como americanos, soviéticos ou chineses... Pensamos que somos a mesma família, pensamos na humanidade de todos os homens. É curioso como, à escala mundial, vivemos, no dia de hoje, um mesmo sentimento comovido de identificação com os mineiros. Os mineiros são todos os homens. A Aldeia Global mobiliza-se e interessa-se vivamente pelo destino destes homens - a CNN, a Sky, a al jazeera, a euro news, a rai, a tele 5, a tve, a globo, a sic, a rtp e a tvi, todo o mundo quer ver em directo o salvamento dos heróis. Todos vivemos a sua tragédia e a sua redenção.
E, embora o Chile queira fazer deste caso uma história de orgulho nacionalista - o que é natural - isto nada tem a ver com nacionalismo, mas, pelo contrário, com planetarismo, com cosmopolitismo, com internacionalismo.
É muito duvidoso que o Chile conseguisse, apenas com os seus meios, levar a cabo esta operação. O projecto de salvamento contou com equipas de especialistas de várias áreas oriundos de todo o mundo: há norte americanos envolvidos (e a NASA particularmente), alemães, japoneses, peruanos, austríacos, franceses, equipas de todo o lado que colaboraram em todas as áreas envolvidas um plano desta envergadura (engenharia, mecânica, minas, psicologia, medicina - dermatologia, ortopedia, oftalmologia, etc, etc, etc). A vitória dos mineiros é a vitória da humanidade. E, subitamente, as palavras dos astronautas que regressam da Lua ganham de novo sentido: não há aqui países, nem rivalidades; há apenas um mesmo sentimento que une os homens de todo o planeta em nome da mais profunda solidariedade: a solidariedade de todos os homens contra a morte.
Tudo isto faz-me pensar, ainda, n´A Peste, a obra prima de Albert Camus. Sitiados numa cidade isolada pelo vírus, os homens resistem como podem. Mas é também no meio daquela adversidade terrível que descobrem em si sentimentos que nem julgavam existir: a irmandade de todos os seres humanos perante a morte, inimigo comum. Não é o que vivemos aqui?
Esquecem-se os atritos e os conflitos, tudo o que é negativo desaparece por enquanto: há um mineiro que tem uma amante. E a esposa legítima espera-o em Campo Esperança sentada ao lado da amante. Não revelam ódios entre si. Naquele momento elas estão unidas pelo amor por um homem.
Há um boliviano entre os 32 chilenos e a Bolívia vive dias de tensão com o Chile. Mas o presidente boliviano está presente no Campo Esperança e agradece ao seu homólogo chileno por tudo o que fez para salvar o seu conterrâneo. E agradece, comovido, ao povo do Chile. É notável! Que espécie de magia se criou aqui para que as desavenças mais ou menos profundas se apaguem assim?
Curiosa expressão desse sentimento de solidariedade humana contra a morte: a cápsula de salvamento desce e sobe outra vez para fazer renascer aqueles que já estavam enterrados. Penso nos cemitérios e nas imagens terríveis dos caixões que descem às entranhas do sub solo para levarem para sempre aqueles que amamos. Mas agora é ao contrário: a Fénix é o contrário do caixão, a Fénix salva da morte, faz ocorrer o milagre da ressurreição e resgata a vida das profundezas. Estas imagens são poderosas, estão investidas de uma força poética completamente imprevista. Nunca o nome de Fénix foi tão apropriado.
5 comentários:
Finalmente ainda há os aspectos místicos: o folclore tem sempre o seu lugar nestas coisas. São 33 mineiros, o primeiro bilhete - espécie de garrafa do náufrago - em que dizem ao mundo que estão vivos continha 33 palavras e são salvos no dia 13-10-10, cuja soma dá 33, a idade de cristo é 33, etc, etc.
Mistic
That was deep ! Grande postal a favor do porco no seu melhor.
JNAS
...
para algo completamente diferente recomendo os Vampiros : AQUI :
http://www.ilhas.blogspot.com/
Acerca da alunagem... tem de se ver isto: http://www.youtube.com/watch?v=Y5MVVtFYTSo&feature=related
Muuuuuiiiiito bem escrito, carago, este post.
Esta história faz lembrar ou tro texto de um filósofo: Huis clos de sartre...
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