A Igreja considerou «inapropriada» a forma como Caravaggio retratou esta história. Recusou o quadro e obrigou o pintor a realizar uma nova versão mais adequada ao espírito religioso da época. Quais as razões desta recusa?
Observando o quadro percebemos que ele tem uma ambígua carga erótica que deve ter incomodada a Santa Madre Igreja. S. Mateus parece demasiado perdido, como se travasse uma luta interior para vencer as suas tentações. E o anjo parece, de facto, tentador, demasiado carnal, demasiado sensual. Atente-se nos seus olhos semi-fechados, nos seus lábios, na veste transparente e volátil que lhe deixa ver as pernas e, sobretudo, na sua gestualidade, uma marca dramática omnipresente na pintura do Mestre. Reparem naquela mão em cima da de Mateus. E na outra, lânguida, prazenteira… Este Caravaggio sabia o que fazia…
A igreja não disse isto desta maneira. Mas justificou-se: S. Mateus teria sido representado como um homem humilde, rude, analfabeto. Não se estaria a sublinhar a devida santidade do apóstolo. E o anjo, pasme-se, pisa a terra como um comum mortal. Humano, demasiado humano…
Obrigado a fazer uma nova versão, Caravaggio apresentou o segundo destes quadros, mais de acordo com as exigências do seu cliente. No segundo quadro, o anjo perde a sua perturbadora sensualidade, perde até a sua fisionomia feminina para ganhar um rosto mais andrógino. Além disso, fica reforçada a diferença de planos entre o divino e o profano – o anjo desce do céu, S. Mateus levanta o olhar, mas não há contacto físico entre eles, ao contrário da primeira versão (note-se mais uma vez a diferença na linguagem gestual do anjo, aqui fechada sobre si mesma ao invés do gesto de contacto que vemos no primeiro quadro).
Apesar de tudo, este segundo S. Mateus, ainda mantém algumas características do primeiro: sobretudo, a sua humildade, a sua rudeza, sublinhadas pelos pés descalços e sujos e pelo seu ar ainda hesitante.
Infelizmente, a história tem ironias dos diabos: o segundo quadro encontra-se na Igreja de S. Luís dos Franceses em Roma. Quanto ao primeiro, o meu preferido, foi destruído durante os bombardeamentos aliados da Alemanha durante a segunda guerra mundial. Tudo o que dele resta é esta ténue fotografia a preto e branco. Ele há coisas do caraças…
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