14/08/09

Dos Contos do Deserto - IV, para o Cão, por Mangas

Vou pela auto-estrada 75 para Oeste. Ultrapasso um Chevrolet prateado, modelo de 80. Ponho-me a pensar no que andei por aí a fazer nos anos oitenta. Pelo retrovisor vejo o grelha do Chevy com alguma ferrugem dos lados. Também não tem matrícula. Vi carros em Chicago com matrículas personalizadas com a palavra Godfather. Há uma grande fila à minha frente. Sirenes da polícia na beira da estrada. Pelo retrovisor, chegam-me dois homens com fardas azuis e estrelas no peito que brilham com o sol. Dão indicações aos condutores para prosseguirem. Com cuidado. Calculo que deve haver uma razão qualquer para o fazerem. Vejo muita coisa por este retrovisor. Enfio uma cassete no auto-rádio. Engole-a sem protestar. Onde é que eu estava nos oitenta? Havia músicas dos Táxi nos corre­dores do Liceu, um polícia a dançar na rua enquanto dirigia o trânsito num anúncio da Lois, bailes de sábado à noite até às tantas, cartas que o meu pai me escrevia de Jerusalém e do deserto do Negueve. Esta cassete tem músicas de Ban e Sétima Legião. Tem sons de acordeão e uma canção com palavras de saudade. As músicas desta cassete não passam na MTV e eu pouco me importo. Dou comigo a pensar na razão por que me esqueço dos nomes de alguns actores, de alguns filmes que me deram algum gozo. (Tenho de virar à esquerda, na direcção daquela placa INDIANA LEFT). Antes de prosseguir, ajeito pela última vez o retrovisor para ter o maior ângulo de visão possível. Chego à conclusão de que talvez me esqueça do que tem pouco interesse lembrar-me, porque ainda sei quem foram o Marlon Brando, o António Silva e o Vasco Santana.
Grand Rapids, Michigan, Setembro/93

in, O Vale dos Deuses

5 comentários:

Cão disse...

Espectáculo, Mangas, espectacular post.

Anónimo disse...

if you try hard, sometimes you can get what you need...


nimoy

Dog disse...

what you "needle", diz o drogado, digria eu.

Anónimo disse...

muito a propósito. Grande texto, mangas, a mostrar ao cão - e a mim também - que nunca nos esquecemos do que é realmente importante.
Evaristo

Cão disse...

Cãocordo, evaristo.