14/09/09

A Arte de Regatear, por Buraq


Na Tunísia, como em todos os países árabes, fazer uma coisa tão
simples como uma compra pode ser o cabo dos trabalhos. Para um ocidental, essa operação não tem nada que saber: os preços estão marcados, temos dinheiro pagamos; não temos, pomo-nos na alheta. Mas nos países árabes não é assim. Tudo se negoceia, tudo se regateia. Os preços dos produtos não só não estão marcados, como são muito difíceis de descobrir. Geralmente é a última coisa de que se fala e, em regra, os vendedores pedem-nos entre cinco a dez vezes mais do que preço que estão dispostos a aceitar. Os Guias, como o American Express, dizem todos que isto é muito típico e que regatear é um jogo e uma experiência (cultural?) fascinante. Pois bem, eu não achei piadinha nenhuma!

Ainda me lembro de quando andava na baixa de Coimbra e os vendedores estavam à entrada das respectivas lojas a moerem-nos a cabeça para entrarmos. Aquilo era a melhor maneira de me fazer fugir a sete pés. Felizmente evoluímos e agora até nas lojinhas da baixa uma pessoa pode entrar sem ter melgas a morem-nos os miolos... Agora imaginem sítios onde a pressão dos vendedores é mil vezes pior do que a baixa coimbrinha dos meus velhos tempos. Na Tunísia as ruelas labirínticas das Medinas são muito apertadas e há lojas que são simples cubículos onde não cabem mais que duas pessoas. Nunca vi tanta gente em tão pouco espaço, berram, praguejam, discutem e, pior que tudo, agarram-nos e puxam-nos... No Ocidente chegámos à conclusão inversa - que é mais eficaz deixarmos o cliente à vontade, ainda que ele possa nada comprar. Nos nossos centros comerciais, nas nossas livrarias, nas nossas lojas podemos passar tardes inteiras a olhar e a mexer sem comprar absolutamente nada e ninguém nos chateia. Pelo contrário, na Tunísia há equipas de melgas a puxarem-nos e a matraquearem-nos a cabeça com parvoíces em série do tipo «Português - Cristiano Ronaldo - Batatas com bacalhau (!!!)»... Passear no meio daquela confusão não tem nada de agradável.

É claro que as Medinas não são todas iguais em todo o lado - se nas zonas turísticas aquilo é uma inferno, se em Tunes mal se consegue andar, já em Kayrouan, cidade santa do Islão, torna-se possível passear tranquilamente por entre os labirintos da cidade velha. O problema é que, descontando alguns aspectos típicos (como pequenas oficinas tradicionais de coisas tão estranhas como amoladores ou afiadores de facas), andar perdido no meio de um labirinto como aqueles não é, para mim, muito aliciante.

Mas, ok, vamos imaginar que até aguentamos isto tudo e mostramos interesse por um produto, vá lá, uma camisa com o crocodilo da Lacoste ao contrário ou uma t-shirt Galvin Klein. Aí chega o pior. É que depois de se desfazer em simpatias e de eleger a qualidade genuína dos seus produtos, o vendedor diz o seu preço que, invariavelmente, nos faz desmanchar a rir. Começa por pedir um preço absurdo e quando cumprimos a nossa parte neste ritual e baixamos o mesmo para 5 vezes menos, o indivíduo lança-se num chorrilho de lamentações, deita as mãos à cabeça, diz-se insultado e, não raramente, entra no insulto pessoal. Tudo isto é uma inconcebível perda de tempo - que saudades que eu tive dos preços tabelados do Ocidente, as oportunidades que eu desperdicei só porque não tive a pachorra de perder a tarde a regatear.

Mas o pior é que os vendedores, não tão excepcionalmente como se possa pensar, insultam-nos mesmo quando não estamos dispostos a pagar as exorbitâncias que eles acham que a contrafacção merece. Que somos uns avarentos, uns racistas e uns exploradores porque na nossa terra pagamos ainda mais pelos «mesmos» produtos; que somos uns mal vestidos que usamos roupa pior do que a que pretendemos adquirir, uns bandidos, etc,etc, etc... Mas quando lhes viramos as costas correm atrás de nós com a mercadoria, a berrarem que aceitam o nosso preço, mas depois já não é bem assim, já é um pouco mais, fónix, mas isto tem piada? Cheguei a enervar-me com um parvo porque achei que ele estava a passar das marcas. Se no meu país me dissessem metade do que ouvi na Tunísia nesta provação de regatear preços, garanto-vos que não só não comprava o que quer que fosse, como era bem capaz de me passar da carola. Mas enfim, estava a jogar fora da casa, um gajo controla-se e prontos...

Escolhi para ler nestas férias na Tunísia, muito a propósito, um dos últimos livros de John Updike intitulado O Terrorista. O livro conta a história de um jovem muçulmano americano que se embrenha nos meandros do fundamentalismo e decide levar a sério a Jihad. A páginas tantas, Updike, fala-nos de um comerciante líbio, emigrante na América que encontrou nos EUA o país ideal para viver, em contraste com a sua terra de origem. Chamou-me a atenção o discurso deste personagem a propósito desta tipicidade árabe de regatear os preços. Imaginem o efeito destas palavras numa pessoa que vivia directamente este inferno de regatear preços com gente tão agressiva:

«(Nos EUA) se temos uma coisa boa para vender, as pessoas compram. Se temos um emprego para oferecer, há quem apareça para o aceitar. Tudo é claro, à superfície. No Velho Mundo (isto é, no Mundo Árabe)pensamos em pôr os preços altos para depois os regatearmos. Mas ninguém compreende. (Nos EUA) até um pobre Zanj que entra para comprar um sofá ou um cadeirão paga o preço da etiqueta tal qual como na mercearia. Mas vêm poucos. Compreendemos e pomos os preços que esperávamos obter mais baixos e vêm mais. Este país é honesto e simpático.»

Não é que eu veja o mundo a preto e branco, mas nesta coisa da clareza também me parece, como ao emigrante líbio do Updike, que vamos uns séculos à frente dos àrabes. Ou então sou eu que sou um Infiel do camandro, que sei eu...

5 comentários:

gramatiCão disse...

A questão árabe é do foro pronominal português. Assim:
Eu nicles, Tu nísia.
Prontos.
Ele, nós, vós, eles etc.

Anónimo disse...

Dog, mafrende, é verdade que o texto parece partir desse preconceito de que os árabes são os eles que se opõem, ou pelo menos, são estranhos, ao nós. Concordo que sim.
Acontece que um pre-conceito é isso mesmo: uma ideia pre concebida que se tem antes do contacto com a realidade. Mas o post fala da minha experiência pessoal depois do contacto com uma realidade que eu desconhecia. É a minha análise e a minha percepção daquela realidade que me pareceu inteiramente «outra».Não é, pois, um pré-conceito é o contrário (um pós-conceito?). E acredita, amigo dog, ninguém foi para outro país com mais espírito de abertura que eu. Mas aqueles gajos são mesmo muito diferentes de nós... Ou então será preciso muito mais que quinze dias - o paul Bowles foi viver para marrocos e o Gide para a tunísia - para desfazer toda a barreira cultura que sentimos. Mas isso é coisa que nunca saberei porque, certamente, não conto viver mais que quinze dias num país árabe.
Buraq

britannicus disse...

Até tou embargonhado com tua inépcia prá barganha co gentio, ó Buraq. Um gajo co`a mofama tem que ter arteirice. Eu cá nunca fui ao gentio, mas o Mustafá - o bufarinheiro cinéfilo marroquino que me vendeu o "Rebolanço no Serralho" na tasca do Calhó(e os plásticos domésticos em geral) - afiançou-me que para um árabe a aritmética é uma ciência do impreciso: a soma de dois e dois depende sempre de se ser comprador ou vendedor. Ergo, o pilim não tem o mesmo valor para quem compra e quem vende.Ergo, apetece dizer pra glosar com o Lacan, co Gentio não " não há relação" comercial fiduciária (embora haja "relação sexual" e fodição imaginosa que eu bem vi o filme). Ergo, bem foste fodido na barganha com a mofama ó, Buraq.

Anónimo disse...

já estás a abrir o jogo, assim o xek vai topar que as hugo boss é ugo bossa e que o laboste não é lacoste. mas prontos salvam-se as diesel com z e as lévis com assento.


azaro di dulce cabana

marroCão disse...

mazeu num disse nada em contrário, eu só sei é que o gide foi lá (e o barthes também) mas num foi nada pá barreira cultural nem nada, eles eram homes sexuais e era mais barato porque lá tem de se pedir quanto é quanto é e depois leva-se, é tanto.