Esta fotografia impressionou-me particularmente. Mais que as fotos dos grandes golos do Diego Forlán, das fintas do Messi ou dos arranques do Muller... Aliás, só aparentemente, esta é uma fotografia sobre futebol. O futebol aqui é só um acidente. No essencial esta foto versa o fanatismo, a intolerância, a cegueira nacionalista.
A foto retrata o momento da chegada da selecção Brasileira e do futebolista do escrete, Filipe Melo, ao aeroporto do Rio. Melo, como se sabe, foi apontado como principal responsável pela eliminação da sua selecção no jogo dos quartos de final com a Holanda. Além do azar de ter marcado um auto golo, Melo foi ainda culpado de ter agredido o Holandês Robben, o que lhe valeu uma justa expulsão que acabou com as hipóteses remotas da sua equipa vencer o jogo. Não importa o passe genial que fez para o golo soberbo do Robinho. Toda a gente, eu também, o condenou.
Mas as pessoas esquecem-se que o futebol é apenas - ou deveria ser - um jogo. Não é um caso de vida ou de morte. Sim eu sei que houve um treinador inglês que ficou célebre por afirmar precisamente o contrário. Mas isso é um slogan com muito mais valor facial que real. O futebol não é uma guerra entre países.
No entanto, mal começa o Mundial, os nacionalismos exacerbados vêem ao de cima. A França fez da sua desastrosa participação um caso de Estado que levou ao envolvimento das principais figuras do país. O governo da Nigéria foi mais longe e decidiu suspender a participação da sua selecção de futebol em competições internacionais durante dois anos (entretanto recuou). E o Brasil chorou e vaiou o burro do Dunga e encenou um filme de terror à chegada do escrete ao Rio de Janeiro.
Esta foto é, pois, eloquente. Melo, o criminoso Melo, está em pânico como se fosse um traidor à pátria. Bem lhe valeu pedir desculpas públicas pelo seu acto tresloucado e dizer que já não tinha mais lágrimas de tanto chorar. Neste momento da sua chegada ao Brasil ele teme, realmente, um linchamento público. Não vemos o que o assusta tanto, mas podemos imaginar a multidão enfurecida. A separá-lo dos bandos de fanáticos acéfalos que o foram esperar ao aeroporto, noite adentro, um ou dois seguranças que deviam valer de muito se as coisas aquecessem. E o Filipe, escondido atrás de um patético boné, abre os olhos de espanto e de medo. É ainda mais impressionante porque sabemos que Melo é, dentro do campo, um verdadeiro guerreiro, um daqueles jogadores que não teme nada nem ninguém. Aqui, pelo contrário, o guerreiro parece uma criança aterrorizada. É essa descida do Olimpo, essa queda do Éden que me impressiona na foto. E a ameaça invisível que sabemos estar lá: a multidão!
No dia do jogo entre a selecção de Portugal e a da Espanha resolvi fazer um teste. Declarei que torcia pela Espanha porque gosto do futebol praticado pelo Xavi, pelo Piqué e pelo Iniesta e porque detesto o futebol burocrático do carlos queirós. Chamaram-me de tudo, até de traidor à pátria! Confesso que, com o decorrer do jogo, foi-me difícil permanecer fiel ao meu declarado apoio. E quando o Simão ou o Hugo Almeida se aproximaram da área espanhola, eu saltei de entusiasmo. Pelo contrário, não fui capaz de vibrar com o golo da Espanha. O futebol não pode ser inteiramente racional, é um facto. Mas pode sê-lo um pouco, o pouco que separa a dignidade da indignidade.
O que é racional é tratarmos o futebol como um jogo e não como um caso de guerra patriótica com os seus fuzilamentos por deserção. Mesmo reconhecendo essa ancestral simpatia pelas «nossas» cores, é possível encararmos o futebol de uma forma mais saudável. Fotografias como esta do ex guerreiro, do homem só prestes a ser linchado pela multidão, têm demasiadas semelhanças com os progoms e com as Noites de Cristal. Devíamos repetir mil vezes que o futebol é um espectáculo, de que o Mundial é, talvez, o maior espectáculo do mundo, mas que não passa de um jogo.
Procurei dizer isto mesmo a um amigo. Que apoiar uma selecção que não a portuguesa não é um caso de traição anti patriótica; que apoiar a selecção portuguesa não é um caso de patriotismo; que a utilização de certos símbolos nacionais na ocasião de um jogo de futebol - como a inenarrável e patética encenação do Hino - devia ser, pura e simplesmente, banida. E perguntou-me esse amigo: mas se não é quando joga a selecção que temos oportunidade de demonstrar o nosso nacionalismo, então quando é que é?
Possivelmente ele tem razão. Os jogos da selecção são o único e último resquício do nacionalismo nos dias de hoje. Talvez já não exista a pátria. Ou pelo menos já não existem oportunidades de lhe expressarmos o nosso amor. Talvez a nação já não faça sentido. Mas será isso mau?
Pode ser um destes dias eu escreva aqui um outro post. A selecção argentina perdeu 4-0 com uma magistral Alemanha e, tal como o Brasil, também foi recambiada para Buenos Aires. No entanto, em vez de ser recebida como a sua congénere brasileira, foi recebida em euforia com slogans de orgulho pela qualidade futebolística dos seus jogadores. As fotos da recepção à selecção da Argentina são, felizmente, o contrário desta foto do Filipe Melo. Mas talvez seja esta foto, e não as da Argentina, o verdadeiro ícone do Mundial de futebol.
Sem comentários:
Enviar um comentário