25/04/11

A Literatura de Sanita Enquanto Género Literário, por Fontes

A literatura de sanita é um género literário injustamente esquecido. Numa época em que todos se queixam de não terem tempo para ler, o momento da sanita, se bem aproveitado, ajuda a resolver o problema. E com a vantagem acrescida de se aprender verdadeiramente alguma coisa. Sim, porque ele há gente que lê na casa de banho, mas o quê? Miseráveis revistas cor de rosa ou inúteis jornais desportivos. Ou seja: tempo perdido! No entanto, o tempo passado na sanita pode tornar-se muito enriquecedor, falando do ponto de vista estritamente cultural, claro.

O R. por exemplo... Trata-se de um indivíduo muito ocupado, realmente ocupado, não é como muitos totós que eu conheço que perdem mais tempo na declaração da sua ocupação do que na ocupação propriamente dita. O R. não - é genuinamente ocupado. E, no entanto, é das pessoas que conheço que mais lê. Um dia destes dizia ele quando alguém lhe fez a inevitável pergunta, «mas onde arranjas tu tempo para ler tanto? Na casa de banho, na sanita, pá!» . O R. é assim, viaja sem sair da sanita com o Bruce Chatwin até à Patagónia, mergulha nas profundezas do tempo com o Gore Vidal até à Babilónia do século V a.c. e percorre as ruas de Berlim contemporâneo com um mapa de estradas sem nunca lá ter posto os pés. A sanita é, para gajos ocupados como o R. uma verdadeira máquina do tempo e do espaço.

Pois bem, recentemente resolvi seguir o conselho do R., comecei a levar literatura à séria para o WC e a coisa resultou – deixei de ter a consciência cultural pesada pelo tempo que perdia na sanita a ler A Bola ou simplesmente a não ler nada e a pensar na morte da bezerra. Foi assim que passei a apostar na leitura de sanita.

A minha primeira descoberta foi que nem todos os livros, nem todos os géneros literários, se podem ler no WC. O romance, por exemplo, é completamente inadequado. A literatura de sanita é feita em períodos curtos de, no máximo, cinco minutos. Isto torna praticamente impossível a leitura de um romance porque perde-se o fio à meada. Mesmo em períodos de desarranjo intestinal grave não se vai à sanita mais que uma vez, duas por dia. A regra é a falta de ritmo e a escassez de tempo e não há romance que resista a tanta irregularidade. Pessoalmente também não aconselho a História pelas mesmas razões e desaconselho vivamente a poesia que exije ar livre, espaço e, de preferência, natureza em estado puro. O ambiente WC não se coaduna com os voos poéticos.

Depois de muito tentar, descobri enfim, um género literário que se coaduna perfeitamente com a literatura de sanita: a História da Arte. A maioria das histórias da arte estão organizadas por capítulos correspondentes a épocas ou estilos que, por sua vez, estão subdivididas em artistas ou escolas mais importantes. Ora isto permite que não se perca o fio à meada: em duas, três incursões sanitárias aprende-se uma unidade de sentido sobre um autor, uma obra ou uma escola. Muito diferente das unidades longas e sofisticadas, próprias do romance ou da história universal. Além disso, o formato História da Arte tem ainda uma vantagem clara relativamente a outros géneros: as imagens, que tornam a leitura muito mais relaxante. É essa, de resto, a vantagem da História da arte relativamente ao conto, por exemplo. Não me passaria pela cabeça ler o Miguel Torga no WC. Mas as Vénus do Botticcelli e do Giorgione, as Madonnas do Rafael, as batalhas do Altdorfer ou o expressionismo do Pollock podem ser descobertas com a tranquilidade que só o WC permite e, portanto, vistas segundo novas perspectivas.

É por isso que eu acho que a História da arte, sem qualquer desprimor, é o género literário de sanita por excelência. Desde que o descobri que acabei com as Bolas e os Records na casa de banho. Agora está lá sempre uma História da Arte – demoram tempo a ler mas vale a pena. Passei a ter tempo de qualidade no WC e já reli A História da Arte do Gombrich – um dos maiores clássicos do género – e estou a acabar Os Segredos das Obras Primas da Pintura, volume I de Rainer e Rose-Marie Hagen, editado pela Taschen. O único problema é que agora, quando alguma visita cá de casa passa pelo meu WC, depois, fica sempre a olhar para mim com um ar esquisito. Já uma vez me confessaram que é muito estranho que, em vez das habituais Caras, Luxes ou TVês Sete Dias, só esteja à disposição do utilizador um calhamaço da ordem de grandeza de uma História da Arte. Fónix, é muito à frente…

5 comentários:

Supernova disse...

A única folha que me passa pelas mãos na casa de banho é a do papel higiénico.

Renova disse...

Não me parece nada higiénica esta postura artística...!

Sanitana disse...

E a imagem não é de uma sanita! Aquilo é um mictório, ignorante. O Grombich não te ensina a diferença?

Artista disse...

Gombrich, seu burro das sanitas. O gajo não colocou a sanita, por uma questão de pudor. E a arte, mesmo quando se defeca, exige essa subtileza na paisagem. Mesmo quando ela passa para o outro nível, e assume a sua sonoridade intrínseca.

Anónimo disse...

Se o autor do post pretendesse ilustrar o dito cujo com uma sanita tinha lá metido a sanita. Claro que a evocação do célebre urinol aqui reportado a propósito do tema escapou por completo ao sanitana que perdeu, pois, uma boa oportunidade para manter a sua exemplar burrice escondida.

... E como diz o Artista o nome é Gombrich...