
E agora vou contar uma história mesmo infantil. Começa assim: Era uma vez era eu pequenino e desenhava caravelas. Tinham por baixo um mar ligeiramente encapelado, por cima gaivotas, facílimas, as gaivotas, com dois riscos curvos se faz uma gaivota canónica, e tinha o barco propriamente dito: um casco em forma de tetraedro (um gajo descobre mais tarde estas coisas horríveis); depois os mastros, três, um maior no meio e os outros em alinhamento mais ou menos perfeito (depois fui ficando intelectual e pus os três mastros cada um com o seu tamanho) e as velas, em forma de mais ou menos. Ah, e tinha mais dois pequeninos mastros, cada um com sua velinha, um à popa e outro à proa. Não sei agora onde fica uma e outra, mas estou certo do que digo. Nunca me arrisquei a desenhar os marinheiros. Iriam sair-me concerteza uns pauzinhos ridículos espetados uns nos outros e eu cá tinha o meu orgulho. Então digamos que estavam os marinheiros todos no porão a fazer qualquer coisa. Em reunião ou a comer, talvez. De qualquer forma o mar estava calmo e eu tinha o cuidado de não desenhar barcos piratas em redor e por isso não era preciso ninguém no convés. Bom, mas o que interessa é que nada do que fiz depois teve tanto êxito como estes barquitos. Ainda hoje é um mistério para mim. Não me lembro já bem, mas imagino que a sequência tenha sido esta: a professora mandou os miúdos fazer um desenho (“façam barcos, meninos, e deixem-me agora descansar um bocadinho que estou com dor de cabeça”) e saiu-me esse. E viu a professora que era bom, gostou e mostrou aos outros meninos. Eu acho que os outros meninos só sabiam fazer aqueles barquitos que também servem de chapéu. Vocês sabem. Bom, do que me recordo é que num certo período da minha vida todos os meninos me pediam para lhes fazer caravelas iguais nos seus caderninhos. E eu, parvo, quando as meninas me pediam a coisa, mal olhava para elas e limitava-me a fazer o que me pediam. É que toda a gente sabe que quando as meninas nos pedem para lhes fazermos barquitos, estão a pedir beijinhos na bochecha. Eu lá punha a língua de fora (é o que os putos fazem, lembro-me lá eu), apertava com força a caneta de feltro e desenhava as caravelas. O seguinte tinha sempre mais cor e mais pormenores que o anterior. Começou por ser só uma vela por cada mastro, depois duas, três, quatro, por aí fora, e punha bandeirinhas em cima dos mastros e postos de vigia e arriscava um homenzito no posto de vigia, de telescópio (eu explico: um bracito curvo a agarrar num pau espetado na cabeça) e janelinhas redondas, muitas, e lá saia uma caravela digna de descobrir o caminho marítimo para as nossas fantasias. E assim durou ainda algum tempo a minha glória. Que o meu desenho era também muito aplaudido na Sociedade, se era, que eu bem ouvia os ooohs espantados das vizinhas. Acho que a minha Mãe as convidava para beber chá só para lhes mostrar o desenho das minhas caravelas, benzadeus. Ainda agora fico espantado quando olho para aqueles barquitos (ainda tenho uma pequena esquadra deles em caderninhos e papelitos avulsos). Mas agora já não faço caravelas. A modos que numa altura da vida surge a maré baixa e um gajo vai encalhando em terra. De vez em quando surge uma onda maior sei lá de onde, um gajo balança e desatina um bocadinho e põe-se a escrever histórias trágico-cómicas sobre viagens passadas em caravelas de papel. Mas é tal o lastro de metáforas e outras figuras de estilo com que enchemos as caravelas que não desencalhamos. E quando um gajo descobre que aquela caravela é afinal um tetraedro, então, é como se lançasse uma âncora. Bom, mas um dia conto de uma história de ficção científica que fiz em papel de linhas com o glorioso título “A Invasão dos Marcianos” e de um projecto fantástico de uma máquina de tradução automática que incluía o chinês para português e volta. Pronto, é isto. Fim.