Aguentei o que pude. Todos estes anos, aguentei o que pude e como pude. E agora não posso mais, por isso vou desabafar. Aqui vai: eu também gosto de futebol. Mais: e até pratiquei futebol, federado e tudo. Eu sei que é uma vergonha. Peço-vos perdão por todos estes anos de disfarce. Perdão por tantas e tão embrulhadas crónicas intelectualóides. Perdão por tanto umbigo. Perdão por tanta fractura exposta. Perdão por tantas e tão estapafúrdias historietas (d)existenciais. Perdão pelo que fiz com a língua. Era tudo a armar ao cuco literário.
Há, no entanto, um problema: um ex-futebólico não existe. Futebólico uma vez, futebólico para sempre. Nunca pode ser “ex” como um marido, um comunista, um travagante, um voto ou um libris. Ou como um alcoólico, verdade seja dita e à saúde.
De facto, O Processo de Kafka nunca me interessou tanto como o do Valentim Loureiro. E que valem os Cem Anos de Solidão ao pé dos cem anos da FIFA? A ligação aberta do Sartre com a Beauvoir teve muito menos piri-piri do que a das autarquias com os clubes.
Mas vós também deveríeis penitenciar-vos. Yes, vós. Eu sozinho porquê? Vós gostais do Santanaláxia Lopes por causa do Sporting Municipal de Lisboa. E do Benfica porque o Benfica livrou o Eusébio da guerra colonial em Moçambique. E do Belenenses por causa do Américo Thomaz, essa abóbora contumaz de nula memória que foi almirante num país naufragado. E admirais o Pinto da Costa porque nunca o apanharam, nem apanharão. Mas quem se lembra do Olhanense? Na época em que foi primodivisionária, a garbosa equipa algarvia deu 1-0 ao Sporting e foi empatar a duas bolas à Luz logo a seguir. Para minha vergonha, lembro-me eu do Olhanense. Ainda desabafo mais: tenho pena de não ter um filho macho. Se tivesse, inscrevê-lo-ia nas camadas jovens. Nem que fossem de caspa.
Bem tento não ser assim. Mas é que também eu estou entre os que aproveitam não ter TV por cabo em casa para irem ao café ver a bola. Abro um livro e finjo que não ligo. Mas ligo. Pelo periscópio periférico, gosto de ver o Saviola a liquefazer os rins ao Naybet com um tornozelo digital. Gosto da heteronímia babélica das equipas. Se me distraio, esqueço o livro e ponho-me a grunhir GOLO como os meus colegas de chávena e bancada. E já me aconteceu sorrir quando o Rui Jorge, que tem três pés esquerdos (cabeça incluída), consegue finalmente centrar uma de jeito para o Pauleta, esse grande açoriano que nunca jogou num dos três ditos grandes porque não é parvo. Mas não é isto o que aqui me traz hoje.
Vai começar o Euro. Quando o Euro acabar, o País vai ficar com um euro, se tanto. O resto foi derretido nos dez estádios novos. Leiria, por exemplo. Ainda há dois anos a cidade esteve dias a fio sem fio de água potável nas torneiras. Agora, empenhou na banca o futuro de vinte anos. Por causa da bola, claro. Por causa de dois jogos da bola. Quando os holofotes se desligarem, quero ver o saneamento, o ambiente, as estradas, as escolas. Quero ver o futuro dos miúdos que não foram seleccionados para os sub-9, ou sub-13, ou sub-21. Ou sub-10 milhões, que é o que somos todos: sub.
Ah, uma coisa: naquele ano, o Olhanense desceu de divisão. E nunca mais subiu.
Há, no entanto, um problema: um ex-futebólico não existe. Futebólico uma vez, futebólico para sempre. Nunca pode ser “ex” como um marido, um comunista, um travagante, um voto ou um libris. Ou como um alcoólico, verdade seja dita e à saúde.
De facto, O Processo de Kafka nunca me interessou tanto como o do Valentim Loureiro. E que valem os Cem Anos de Solidão ao pé dos cem anos da FIFA? A ligação aberta do Sartre com a Beauvoir teve muito menos piri-piri do que a das autarquias com os clubes.
Mas vós também deveríeis penitenciar-vos. Yes, vós. Eu sozinho porquê? Vós gostais do Santanaláxia Lopes por causa do Sporting Municipal de Lisboa. E do Benfica porque o Benfica livrou o Eusébio da guerra colonial em Moçambique. E do Belenenses por causa do Américo Thomaz, essa abóbora contumaz de nula memória que foi almirante num país naufragado. E admirais o Pinto da Costa porque nunca o apanharam, nem apanharão. Mas quem se lembra do Olhanense? Na época em que foi primodivisionária, a garbosa equipa algarvia deu 1-0 ao Sporting e foi empatar a duas bolas à Luz logo a seguir. Para minha vergonha, lembro-me eu do Olhanense. Ainda desabafo mais: tenho pena de não ter um filho macho. Se tivesse, inscrevê-lo-ia nas camadas jovens. Nem que fossem de caspa.
Bem tento não ser assim. Mas é que também eu estou entre os que aproveitam não ter TV por cabo em casa para irem ao café ver a bola. Abro um livro e finjo que não ligo. Mas ligo. Pelo periscópio periférico, gosto de ver o Saviola a liquefazer os rins ao Naybet com um tornozelo digital. Gosto da heteronímia babélica das equipas. Se me distraio, esqueço o livro e ponho-me a grunhir GOLO como os meus colegas de chávena e bancada. E já me aconteceu sorrir quando o Rui Jorge, que tem três pés esquerdos (cabeça incluída), consegue finalmente centrar uma de jeito para o Pauleta, esse grande açoriano que nunca jogou num dos três ditos grandes porque não é parvo. Mas não é isto o que aqui me traz hoje.
Vai começar o Euro. Quando o Euro acabar, o País vai ficar com um euro, se tanto. O resto foi derretido nos dez estádios novos. Leiria, por exemplo. Ainda há dois anos a cidade esteve dias a fio sem fio de água potável nas torneiras. Agora, empenhou na banca o futuro de vinte anos. Por causa da bola, claro. Por causa de dois jogos da bola. Quando os holofotes se desligarem, quero ver o saneamento, o ambiente, as estradas, as escolas. Quero ver o futuro dos miúdos que não foram seleccionados para os sub-9, ou sub-13, ou sub-21. Ou sub-10 milhões, que é o que somos todos: sub.
Ah, uma coisa: naquele ano, o Olhanense desceu de divisão. E nunca mais subiu.
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