14/08/05

Viagens na “Nossa” Terra, por Almeida Garrido

Tenho a sorte de ter uma fobia: andar de avião. Tal sorte leva-me a considerar a Espanha como destino preferencial de férias. Espanha é o melhor país do Mundo. Tem tudo! Excelentes vinhos, óptimas praias, arte, cultura, museus, touradas, tapas, monumentos que vão desde o Império Romano à arquitectura pós-moderna como mais nenhum outro país tem à excepção da França e da Itália. Espanha tem eventos desportivos e culturais de nível mundial, livros e livrarias, pintores, peixe, carne e mariscos. Espanha tem mulheres lindíssimas que se pintam, perfumam, passeiam e riem no meio da rua. Tem plazas e esplanadas, montanha, lagos idílicos, florestas verdejantes e até tem Portugal!

Na 1ª etapa, fui de Coimbra a Leon com paragem em Salamanca para almoçar. Aqui, deu-se o único episódio desagradável quando tive que fazer ver ao animal do empregado de mesa que o mundo já não se divide em espanhóis e portugueses, pois que nem eu sou o Príncipe Perfeito nem ele era parecido com Isabel, a Católica. O cabrão pôs-se a resmungar num castelhano cerrado e quando lhe pedi para hablar de espacio, o gajo disse que em España se habla castellano e que se eu quisesse que aprendesse. Passei-me e expliquei-lhe em portuñol:
- Hombre, lo mal non es que yo no te entienda. Lo mal es se te mal entiendo. Pues que si quieres que te entienda, habla de espacio y si no quieres que te entienda, mejor es hablar chino porque se te malentiendo… coño, va a haber circo aquí e ahora, caralho!
O velho amansou e lá mandou um pardon señor que eu entendi perfeitamente.

Chegados a Leon, destaque para a catedral gótica, a casa Botines de Gaudí e um magnífico rabo de boi com setas. O vinho da casa é que era merdoso.

No outro dia, pelo meio da manhã, rumámos a Gijón, próspera cidade com uma baía lindíssima. O tempo estava bom e tivemos praia. O paseo maritimo estende-se por quilómetros e quilómetros, propiciando um passeio agradabilíssimo. Invejo os espanhóis pela qualidade dos espaços públicos: passeios, jardins, plazas, monumentos, parques, recintos desportivos, etc. Costumo dizer até que o grau de civilização de um povo se mede pela qualidade dos espaços públicos, na medida em que demonstram o quanto o colectivo se sobrepõe ao particular. Ora, se o objectivo a realizar pela acção política é a promoção do bem-estar público, o individual deve sempre subjugar-se ao colectivo. O planeamento urbanístico e a cidade são o processo e o resultado que permite aquilatar o quanto se alcança esse objectivo. Dito isto, poupo-me a mais considerações e seguimos para os Picos da Europa.

Covadonga é uma cagada! Tem lá uma merdunça de um museu feito com as oferendas pirosas dos peregrinos e um templo neo-românico dos finais do século XIX, mais uma estátua patética do Pelágio. Safa-se a paisagem e a gruta-santuário. Mas este local tem tanto de piroso como de simbólico. É um anti-Alhambra. Se olharmos para Sul, para o Alhambra vemos como era sofisticada a civilização do Andaluz. Comparar o Alhambra com a toca de Covadonga dá-nos a medida do abismo que separava o norte gótico e cristão do sul islâmico e mediterrânico. É a mesma distância que vai de Vale da Porca a Nova Iorque! O abismo dá a dimensão do mistério: como foi possível que os bárbaros montanheiros do norte, incapazes de imaginar sequer o que fosse um limiar mínimo de civilização já que desconheciam em absoluto a cidade como expressão urbanística para além daquilo que não destruíram da herança romana, como foi possível , dizia, que tenham vencido e expulsado os islâmicos da península? A resposta tem tanto de simples como de inacessível para os fanáticos xenófobos. É que os bárbaros do norte tinham a semente que seria o segredo do triunfo: a propensão para o universalismo, isto é, a capacidade de integrarem o que de bom e válido lhes é legado pelos outros. Os islâmicos do Al-Andaluz cavaram um beco luxuoso que os condenou à decadência e à perdição, pois se fecharam culturalmente. Adormeceram indolentes, embevecidos com o seu sucesso e conforto, crendo terem atingido um equilíbrio que lhes parecia paradisíaco mas que era simplesmente imobilizador.

Próxima paragem no Parador de Cangas de Onís onde, depois de um breve descanso fui para o bar no antigo claustro do mosteiro beneditino. Gin tónico com e um livrito: A «História Artística da Europa», dirigida por Georges Duby: «Bernardo - diz um dos autores - não se limita a criticar; propõe como alternativa uma “estética da autenticidade” de onde se recolhe – como no Bauhaus de Gropius – o máximo de energias intelectivas e o máximo dos respectivos resultados formais.» Na verdade, S. Bernardo de Claraval critica violentamente o figurativismo decorativo e os monstros que povoavam toda a arquitectura românica numa aterrorizadora pedagogia do medo, propondo uma nova estética, depois chamada cisterciense e magnificamente testemunhável em Alcobaça, onde o despojamento significasse espiritualidade e recolhimento. É a esta atitude que o autor, de forma certeira e surpreendente, compara a Gropius e à Bauhaus. Neste sentido e no limite, o suprematismo tem algo de cisterciense e S. Bernardo algo de minimalista, pois que a geometria é irmã da teologia e o quadrado preto de Malevich é um alfa-ómega.
Ao jantar, um volovent de setas, seguido de “delícias de cerdo ibérico”, acompanhado por um tinto Prado Rey, Ribera del Duero, roble 2003, com taninos bem fortes, uma estrutura sólida e profunda, cor fechada com laivos avermelhados, intenso, prolongado e com aromas que se desdobravam da tosta à especiaria.

No dia seguinte, Miracielos, próximo de Llanes. Um pequeno hotel a 80 metros da praia fantástica. Uma baía abraçada por duas restingas de pedra onde cresciam pinheiros mansos. A linha de costa preservada e verdejante com vacas a pastar. Os fetos escorregam até à areia. A água é gelada, mas eu não me importo. Três dias descansados. Gastronomicamente, destaco um magnífico robalo grelhado comido em frente ao porto de Llanes com um albariño cujo nome já não lembro. Aproveito para lançar a questão uma vez levantada pela enóloga favorita da RS.T (cujo nome não posso dizer porque o Grão-mestre não deixa) sobre a recente moda de cortar o peixe longitudinalmente em duas metades. Pode ser mais rápido e mais bonito, mas atenta contra a dignidade do bicho, tornando-o seco.

Em Llanes, porém, a experiência mais marcante foi a visita ao campo municipal de golfe. Sim, em Espanha há campos municipais de golfe. Não é um desporto elitista, embora seja caro para os turistas. O campo é magnífico. O slogan promocional diz tratar-se “provavelmente” de um dos mais bonitos campos da Europa. Eu conheço poucos campos, mas garanto que podem tirar o “provavelmente”. Foi construído sobre um planalto com o maciço Cantábrico de um lado e o oceano do outro. As vistas são deslumbrantes. Destaco o hoyo 7, cujo tee de saída se pode ver na foto. O green está 165 metros à frente. Não há fairway, tem que ser uma tacada directa. As vistas são celestiais, no sentido literal, com Llanes ao fundo. O vento é permanente, pois estamos a uma altitude de cerca de 200 metros e ao lado do mar, o que dificulta o voo da bola. A primeira bola saiu-me mal e foi para Llanes. A segunda exigia concentração. Escolho o ferro 5, ensaio bem o movimento e não me atemorizo com os observadores. Faço como o meu mestre, o Mau: baixo-me levemente e arranco um pedaço de relva como quem cata um piolho, ergo o braço e solto os pintelhos verdes ao vento. Com um ar de entendido observo o lado para onde esvoaçam e envergo um olhar de especialista. Franzo o sobrolho como quem morde a táctica e faço-me à bola. Stance correcto, backswing lento e desenhado, olhos na bola, pulso firme, swing a descer e PLAC! Quando levanto o queixo vejo o voo da bola. Subiu bem, desceu e caiu a dois metros da bandeira! Os velhos seguem viagem e eu insultei-os mentalmente!

Em Bilbao só deu para ver o Guggenheim. Bilbao está cheia de referências ao Pio Baroja que, para quem não sabe, é o nickname do nosso bilbaíno da confraria. Sim, que nós somos uma confraria internacional e temos um bilbaíno. Em Bilbao há livros do Pio Baroja em todas as livrarias, há calles Pio Baroja, estátuas e até um parque de estacionamento. Exige-se um post sobre o Pio Baroja ao confrade que assim se assina (bela cacofonia esta: cassimsassina!). Guggenheim é o Guggenheim. Estava lá uma merdunça de uma exposição fantástica sobre os aztecas. Não é que eu não goste, mas eu ia em busca da pop art, do Warhol, do Rauschenberg, Rosemquist e Koons e estava tudo cheio de aztecas! Só um Warhol (150 Marilyns coloridas) um Rosemquist e três ou quatro Rauschenberg. Gostei dos expressionistas abstractos. Destaco Franz Kleine, Willem de Kooning, um Rothko só (de entre os vários da Fundação) e, sobretudo, o catalão Tapiès de quem venho gostando cada vez mais. Referência para o Richard Serra que está representado em Serralves, com uma instalação intitulada “The matter of time”.

Jantar numa sidreria no casco viejo. Atenção a esta ementa: enchidos variados, omolete de bacalhau e uma costeleta de boi em sangue que ocupava o prato todo e que foi a melhor carne que já comi nos últimos anos, queijo e marmelada, café e sidra à discrição! Preço? 15 euros! Quanto à sidra, embora sendo agradável e propicie um ambiente engraçado com aquele ritual em que se serve, só a bebe quem não tem vinho.

A caminho de S. Sebastian, fomos por Azpeitia, com paragem em Loiola, terra de Santo Inácio. A religiosidade ferverosa dos bascos é facilmente visível. Há jesuítas em todo o lado, e Santo Inácio é um herói nacional nas terras do interior. A basílica que ergueram a Inácio na sua terra natal - Loiola - é imponente. O jesuitismo basco, compatível com a prosperidade e desenvolvimento económico, financeiro, cultural e social das terras bascas, devia dar que pensar aos jacobinos republicanos que encontraram no jesuitismo a causa da decadência e do atraso económico português. O País Basco é a prova do contrário. A jesuítica prosperidade basca prova ainda a burrice dos jacobinos republicanos portugueses (e não só!) que expulsaram, prenderam, humilharam e ridicularizaram os jesuítas, imbecilmente convencidos que assim trilhavam os rumos da prosperidade.

Em San Sebastian é tudo bom e bonito. Tão bom que se me dessem a escolher uma cidade para viver eu hesitaria entre San Sebastian e Barcelona. Abominei apenas aqueles bares bascos que eu também já vira em Bilbao, com a bandeira colada na parede rodeada com fotos dos etarras que eles consideram mártires. Usam boina como marca de uma raça que acham exclusiva e falam uma língua que se orgulham que ninguém entenda e isso, além de imbecil, preocupa-me, pois que se o País Basco é das terras mais belas, prósperas e atractivas que já visitei, temo que este fechamento cultural do qual este orgulho etarra, terrorista e narcísico, possa vir a condenar a Espanha à mesma sorte do Andaluz de há 500 anos. A causa de então parece ser a mesma de agora: soberba e fechamento cultural numa época de universalismo, mobilidade e multiculturalismo. Alguém que explique aos etarras que a especificidade da língua basca se deve apenas a um factor: o ter ficado à margem da acção benfazeja e civilizadora da latinização.

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