Dobrei o cabo meridiano da vida. Duvido que viva tanto como já vivi. É altura de pensar nas memórias. Um gajo olha para trás e só vê merda. Por isso, o melhor é continuar a olhar em frente. Isto significa que esta página inaugural é já, também e ainda no primeiro parágrafo, a última página das minhas memórias. Isto traz-me uma grande responsabilidade. É importante que estas memórias, ou melhor, memória, não deixe má impressão. Não pode ser uma memória de merda. Esforçar-me-ei.
Estava aqui a desfolhar os papéis quando me veio à lembrança um confrade que anda arredio. Foi meu colega desde o primeiro do Ciclo Preparatório ao último da Faculdade. Foi um dos confrades mais entusiastas aqui do Porco. Organizava jantares, escrevia reportagens, tirava fotografias, enchia-nos o correio electrónico com mensagens inúteis, telefonava, jantava connosco, etc. Há dois anos que anda desaparecido, ninguém o vê a não ser acidentalmente. A amizade continua inalterada e fortíssima. Ele há-de aparecer. É o Galgo.
Estava aqui a ver uma «licença militar» de 1985 quando fui passar o Verão a Inglaterra. Lembro-me dessas férias. Tirei passaporte, paguei uma taxa de 1000$00 para me poder ausentar do país, levava pesetas, francos e libras e uma licença militar passada pelo DRM a dizer que eu tinha a situação regularizada e me encontrava na «Reserva Territorial». Nunca soube o que era isso. O papel, já amarelado, recordou-me as inspecções, a minha única memória da caserna. Eu fui com o Galgo às inspecções militares. Éramos da mesma idade e vizinhos. Lá fomos ao mosteiro de Santa-Clara-a-Nova. O Galgo tinha metido uma cunha. O pai dele, entenda-se. Tinha um capitão amigo, pagou umas notas, e ia seguro de que não pagaria à Pátria o que ela reclamava. Eu juro que não movi uma palha para evitar o cumprimento dessa obrigação. Não porque tivesse vontade de servir a dita, mas porque acreditava que não me queriam lá para nada. Pobre Pátria que precisa de um gajo como eu para a defender. Quando isso acontecer, quer dizer que já 'tá fodida! Lá fomos. O Galgo ia confiante, eu também. Por razões distintas, como se viu. Fizémos muitos testes. Psicotécnicos com cruzinhas e a contar cubos postos em estruturas de aparência tridimensional, um ditado porque nos esquecemos do diploma de estudos, uma consulta médica em que o doutor nos perguntou se sofríamos de alguma coisa, um raio-X, um teste à audição, mais outro à visão, etc. Foi um dia inteiro a andar daqui para ali e dali para aqui. Intenso. A certa altura, lá para o final da manhã, pedem-nos para mijar para um copinho de plástico. Era para fazer o teste às diabetes. Punham lá uma palhinha que, depois de bem humedecida, se tingia numa gama de cores que indicaria o nosso estado. Eu portei-me bem. O resto da malta mostrou uma secura repentina, intimidada pelo facto de estarmos ali uns à frente dos outros com o copo na mão e a pila de fora da braguilha a fazer shhhhhhh. Quanto mais shhhhhhhh fazíamos, mais inibidos se mostravam todos e mais se retraíam as bexigas. Todos menos eu. Aquilo foi um consolo. Posso dizer que foi o melhor serviço que prestei à Pátria. Orgulho-me disso, devo dizer. Se a Pátria dependesse da minha disponibilidade mictória, a Pátria seria uma Potência. A Pátria pedia-me mijo e eu dava, abundantemente. Não era como aqueles que por ali andavam em círculos com o copo na mão a fazer shhhhh. Vai daí, o Galgo disse-me assim:
- Ó Luís, tu não precisas de tanto, carago. Dá aí um bocado.
E estendeu-me o copo. Eu, fraternalmente, e porque gosto de partilhar, dei-lhe metade da minha colheita. Vendo isto, os circunstantes venceram a timidez e fizeram pedidos idênticos. Não multiplicámos o líquido, mas dividimo-lo por tantas porções quantas as necessárias. Ninguém ficou sem o seu quinhão. Cada um ficou com um golezito, salvo seja, pequenino mas o suficiente para embeber a palhinha da diabetes e para que se pudesse colorir conforme a densidade dos meus açúcares. Claro que, nesse dia, ninguém acusou diabetes. Fiquei satisfeito. Ficámos todos satisfeitos. Todos menos o Galgo que, apesar da cunha, seria chamado para cumprir serviço militar. Eu não, eu passei à reserva territorial.
Estava aqui a desfolhar os papéis quando me veio à lembrança um confrade que anda arredio. Foi meu colega desde o primeiro do Ciclo Preparatório ao último da Faculdade. Foi um dos confrades mais entusiastas aqui do Porco. Organizava jantares, escrevia reportagens, tirava fotografias, enchia-nos o correio electrónico com mensagens inúteis, telefonava, jantava connosco, etc. Há dois anos que anda desaparecido, ninguém o vê a não ser acidentalmente. A amizade continua inalterada e fortíssima. Ele há-de aparecer. É o Galgo.
Estava aqui a ver uma «licença militar» de 1985 quando fui passar o Verão a Inglaterra. Lembro-me dessas férias. Tirei passaporte, paguei uma taxa de 1000$00 para me poder ausentar do país, levava pesetas, francos e libras e uma licença militar passada pelo DRM a dizer que eu tinha a situação regularizada e me encontrava na «Reserva Territorial». Nunca soube o que era isso. O papel, já amarelado, recordou-me as inspecções, a minha única memória da caserna. Eu fui com o Galgo às inspecções militares. Éramos da mesma idade e vizinhos. Lá fomos ao mosteiro de Santa-Clara-a-Nova. O Galgo tinha metido uma cunha. O pai dele, entenda-se. Tinha um capitão amigo, pagou umas notas, e ia seguro de que não pagaria à Pátria o que ela reclamava. Eu juro que não movi uma palha para evitar o cumprimento dessa obrigação. Não porque tivesse vontade de servir a dita, mas porque acreditava que não me queriam lá para nada. Pobre Pátria que precisa de um gajo como eu para a defender. Quando isso acontecer, quer dizer que já 'tá fodida! Lá fomos. O Galgo ia confiante, eu também. Por razões distintas, como se viu. Fizémos muitos testes. Psicotécnicos com cruzinhas e a contar cubos postos em estruturas de aparência tridimensional, um ditado porque nos esquecemos do diploma de estudos, uma consulta médica em que o doutor nos perguntou se sofríamos de alguma coisa, um raio-X, um teste à audição, mais outro à visão, etc. Foi um dia inteiro a andar daqui para ali e dali para aqui. Intenso. A certa altura, lá para o final da manhã, pedem-nos para mijar para um copinho de plástico. Era para fazer o teste às diabetes. Punham lá uma palhinha que, depois de bem humedecida, se tingia numa gama de cores que indicaria o nosso estado. Eu portei-me bem. O resto da malta mostrou uma secura repentina, intimidada pelo facto de estarmos ali uns à frente dos outros com o copo na mão e a pila de fora da braguilha a fazer shhhhhhh. Quanto mais shhhhhhhh fazíamos, mais inibidos se mostravam todos e mais se retraíam as bexigas. Todos menos eu. Aquilo foi um consolo. Posso dizer que foi o melhor serviço que prestei à Pátria. Orgulho-me disso, devo dizer. Se a Pátria dependesse da minha disponibilidade mictória, a Pátria seria uma Potência. A Pátria pedia-me mijo e eu dava, abundantemente. Não era como aqueles que por ali andavam em círculos com o copo na mão a fazer shhhhh. Vai daí, o Galgo disse-me assim:
- Ó Luís, tu não precisas de tanto, carago. Dá aí um bocado.
E estendeu-me o copo. Eu, fraternalmente, e porque gosto de partilhar, dei-lhe metade da minha colheita. Vendo isto, os circunstantes venceram a timidez e fizeram pedidos idênticos. Não multiplicámos o líquido, mas dividimo-lo por tantas porções quantas as necessárias. Ninguém ficou sem o seu quinhão. Cada um ficou com um golezito, salvo seja, pequenino mas o suficiente para embeber a palhinha da diabetes e para que se pudesse colorir conforme a densidade dos meus açúcares. Claro que, nesse dia, ninguém acusou diabetes. Fiquei satisfeito. Ficámos todos satisfeitos. Todos menos o Galgo que, apesar da cunha, seria chamado para cumprir serviço militar. Eu não, eu passei à reserva territorial.
Foto: http://www.fawley-hants.co.uk/Council/Council-News/November_2003/Imagefurniture/A-Pint-of-Beer.jpg
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