16/10/06

"Ligações Perigosas", por Le Chevalier

Ovídio, na «Arte de Amar», recomenda aos amantes o orgasmo simultâneo:

«Mas não deixes para trás a tua parceira, desfraldando mais largas velas,nem seja mais rápido o ritmo dela que o teu; avançai para a meta ao mesmo tempo, então, será pleno o prazer, quando, par a par, jazerem, vencidos, a mulher e o homem.»

Em todo o poema de Ovídio se detectará o espírito barroco. Os jogos de sedução, o elogio da mentira, o engano, o disfarce, a máscara, a traição, as aparências e os espelhos, os ambientes cortesãos, o culto do prazer, as intrigas palacianas, enfim, tudo o que se reencontrará no tardo-barroco às vésperas da Revolução. Nenhum filme o mostra tão bem como o "Ligações Perigosas" (1988) de Stephen Frears, baseado na novela de Choderlos de Laclos. A cena final em que Glen Close (Marquesa de Merteuil) retira a maquilhagem simboliza, como já muitos notaram, o fim do Antigo Regime. Como a morte em duelo de John Malkovic (Visconde de Valmont), às mãos do impulsivo Keanu Reeves (Chevalier Raphael Danceny) é uma metáfora da Revolução e um anúncio do espírito romântico. O fim de Malkovich, esvaído em sangue sobre a alva e álgida neve, é o fim de um tempo que será dado como vicioso e corrupto pelo puritanismo revolucionário. Mas, a morte de Malkovich implicará a morte de Michelle Pfeiffer, por desgosto de amor, incapaz de viver sem o amor pecaminoso que se impõe à sua vontade e a domina completamente. A paixão que Malkovich alimentara por Pfeiffer, e que julgara dentro do jogo calculista da perfídia barroca orientada para a intriga e para o prazer, revela-se afinal fora do controlo da vontade e da previsibilidade do cálculo. Malkovich, moribundo, confessa-se apaixonado na presença do seu jovem carrasco, Reeves, uma personagem já romântica. Desfalece logo após, no que é acompanhado pelo desfalecimento de Pfeiffer. Isto é, anuncia-se a Revolução quando Glen Close limpa o rosto, mas outra revolução se anuncia na morte simultânea dos dois amantes: o nascimento do amor romântico, decalcado já não de Ovídio mas do modelo shaekespeareano, um amor impossível e trágico. Não é o orgasmo que é simultâneo, é a morte simultânea dos amantes. Por amor.

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