Quando o meu pai se despediu, um dos amigos que me tinha topado desde o início, agarrou nos livros e ofereceu-mos, o meu pai perguntou como é que se diz?, eu disse, e mais tarde, enquanto descia as escadas, olhei para uma das janelas igual às outras e pensei que, apesar de tudo, todos eles deviam ser felizes porque não tendo nada, tinham muitas coisas e estavam juntos, não precisavam de arrumar as tralhas enquanto liam livros do Major Alvega e do Príncipe Valente, os putos até podiam brincar com pistolas quase verdadeiras e almoçar enlatados, e eu naquele quarto até podia ser invisível. Nessa tarde choveu até anoitecer. Uma tempestade imensa varreu as montanhas. Quando trovejou as velhas rezaram e os homens esconderam-se a coberto do perigo. As traseiras da casa onde morávamos alagaram-se até ao joelho e o colchão onde eu dormia parecia uma ilha ensopada. O meu pai teve de fazer um buraco na parede de modo a escoar a água para a horta do vizinho. As roupas misturadas com batatas na lama, caixotes empilhados, chávenas de casquinha e álbuns de fotografias arrastados pela torrente das águas. Lembro-me do choro silencioso da minha mãe, e do meu pai encostado a um canto ancorado num cigarro, o olhar fixo e carregado, sem dizer uma única palavra. Lembro-me também de ter pensado que, vistas bem as coisas, os refugiados do lar talvez não fossem tão felizes quanto isso..
Blog da RS.T - Real Esseponto do Tinto - Coimbra - Os Três Pastorinhos também bebiam o seu copito
29/10/06
Texto sem Título, por Mangas
Recordo-me agora de como tudo aconteceu: o meu pai meteu-me no autocarro e levou-me com ele a visitar uns amigos de infância, refugiados como nós, que se instalaram num lar abandonado, por empréstimo. Entrámos num corredor estreito encimado por janelas de vidro baço através das quais o sol diluía a penumbra. No quarto onde viviam as duas famílias dos amigos do meu pai havia malas abertas, caixotes empilhados, tábuas de madeira, cobertores a servir de colchão e outros de palha alinhados pela parede. Todos os cantos estavam ocupados. O meu pai sentou-se num banco improvisado e trocou recordações com os amigos. Eu sentei-me no chão e troquei bolachas Maria pelo fascínio da contemplação silenciosa daquele caos habitado. Os filhos comiam carne enlatada e bebiam leite Nido por malgas de barro sem ligarem nenhuma a que eu estivesse por perto. Uma mulher entrou, acenou ao meu pai e trouxe-lhe café a fumegar. Passou-me a mão pela cabeça, mas na realidade não creio que me tivesse tocado sequer, que me tivesse sentido ou dado pela minha presença entre os volumes encaixotados que lhe sobreviveram à fuga. Num dos caixotes que serviam de mesinha de cabeceira estavam alguns livros do Major Alvega e do Príncipe Valente o que atraiu fixou a minha atenção - as capas eram a preto e branco; tudo o resto que sobrava da realidade estranha e desordenada à minha volta era um mosaico colorido, um retalho amarrotado de objectos e pessoas. O Major Alvega voava no seu Spitfire sobre as nuvens de um céu manchado pela cera de uma vela. O do Príncipe Valente estava encoberto e eu só conseguia distinguir-lhe a espada. Os miúdos acabaram a ração de combate e foram brincar com pistolas de cartão, enquanto eu fiquei sentado a tentar folhear a primeira página do Major com o olhar. Existiam outras famílias nos outros quartos. Os homens foram chegando e cumprimentaram-se com abraços. Alguns riam, outros lamentavam. Por ordem de chegada. Era assim: se os últimos lamentavam, os que lhes chegavam a seguir, não sorriam, e vice-versa. Todos eles tinham em comum sentarem-se muito direitos, mas com pesar, posturas erectas, mas com esforço. Parecia-me a mim. O café da mulher não chegou para todos e eles recusaram por cortesia...
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Ficção
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