28/02/08

A Paixão de Cristo Segundo a Turma C, por Maria Madalena

A Paixão de Cristo de Mel Gibson é um dos filmes mais cabotinos que já tentei ver (digo tentei porque aquilo é impossível de ver). O filme é ideologicamente retrógrado. É um verdadeiro retrocesso porque justifica a mensagem Cristã da pior forma: apelando, simplesmente, ao terror e à compaixão. Era assim que a Idade Média via Deus com um misto de culpabilidade, compaixão e terror; mas não pode ser esta a forma de, no século XXI, justificarmos o cristianismo.

Prefiro mil vezes A Paixão de Cristo de Martin Scorsese e a dimensão humana e céptica que está por detrás da sua Santidade. Scorsese coloca-nos no lugar de Jesus. Gibson limita-se a despertar um mórbido sentimento de horror e comiseração. É certo que o filme de Scorsese foi recebido como herético por se fundar nos Evangelhos Apócrifos, mas é, de longe, muito mais pertinente e faz muito mais pela mensagem Cristã do que a visão reaccionária e retrógrada de Gibson, supostamente baseada nos evangelhos oficiais.

Mel Gibson é um pornógrafo da violência. Espanta-me como a Igreja admira a sua visão sado-masoquista. Dá a impressão que, desde que embrulhada num contexto bíblico, a violência gratuita está justificada. Porque é que a simples sugestão de uma cena de sexo num filme anónimo pode ser tão escandalosa e aquelas cenas de meia hora de flagelação do Cristo de Gibson são consideradas imaculadas?

Mas às vezes a coisa corre mal. O S. é meu amigo e um dia destes contou-me esta interessante história que se passou com o filho. Conta-me o S. que o professor de moral da turma do filho teve um destes dias a ideia peregrina de passar o filme do Gibson nas aulas, em vários capítulos para ser mais emocionante... Mas parece que o resultado não foi bem aquele de que senhor estava à espera. Metade da turma, conta-me o S., vira a cara para o lado ou simplesmente recusa-se a ver o filme. E a outra parte vê o filme de uma perspectiva que, de certezinha, não era aquela que o professor esperava. Na última aula, ia a meio o flagelo, quando grita um aluno do fundo da sala:
- Eh malta, não percam esta cena, é espectacular, o gajo agora vai-lhe dar com um cacete ainda maior… É sangue por todo lado...

Ou seja, os alunos estão a ver o filme como vêm qualquer vulgar filme de «artes marciais», de perseguições de automóveis ou de sanguinárias batalhas de Power Rangers no espaço. O que admiram é, simplesmente a crueza da violência em todo o seu esplendor. Parece que em vez do filme formar os alunos piedosos e bons cristãos de que o professor estava à espera, está é a formar verdadeiros cultores da violência gratuita. Eles apreciam os golpes como se fossem poemas, admiram mais a brutalidade do soldado romano que o sofrimento de Jesus. Em vez de sentirem pena e compaixão, aplaudem, isso sim, os esguichos de sangue a jorrarem no écran… Um filme destes é perigoso até do ponto de vista dos seus próprios objectivos. Gibson passou os limites do decoro. E é por isso que eu receio que a anedota se torne realidade: que o seu próximo filme seja mesmo a descrição detalhada durante três horas dos últimos dois minutos da vida de Joana D`Arc a arder na fogueira, santa agonia, valha-nos Deus que bem pode…

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