19/04/04

EU E OS GALÁCTICOS, por Le Vice

INTRÓITO
Eu tinha feito uma promessa a mim mesmo que era a de não puxar o tema da bola (quer dizer, do ponto de vista da discussão tifósica) para o tapor. Achei que era um tema adequado aos mails, mas que debatê-lo nas páginas do tapor ia inundar o Porco de literatura de cordel acerca da bola. Ora para isso basta-nos o Ranhoso ao sábado à tarde.
Infelizmente o meu amigo xiita não foi da mesma opinião, pelo que ao abrir as hostilidades num post sobre o Grande Real Madrid (ou sobre o Vice?), deixa-me à vontade para encher o Porco com páginas sem fim acerca de futebol. Prevejo a perda drástica de alguns leitores ou pelo menos a mudança do seu perfil. Falo por mim, que quando ando na blogosfera e me deparo com comentários sobre bola, a primeira coisa que faço é zarpar. Não é que não seja um tema do meu agrado, mas porra!, o que não falta neste país é discussão sobre futebol: na rádio, na tv, na imprensa escrita... E agora na blogosfera? E até no tapor? Ná.

Mas também é verdade que o Tapor não tem temas tabu e por isso, iniciadas as hostilidades pelo xiita, vai de amandar uns palpites sobre bola. Se bem que o dito post do xiita me deixe um pouco baralhado. Não sei se o tema daquilo é o Real Madrid ou eu próprio. Não sei se o título não devia ser «O Meu Amigo Vice». Pareceu-me mais um texto sobre a minha pessoa que outra coisa, mas enfim… De qualquer modo aproveito para agradecer as referências elogiosas, embora discorde totalmente do que foi afirmado: eu não vejo um boi de filosofia, nem de música, muito menos de cinema. Eu percebo é de bola porque, como diz o Mangas, foram muitos anos de cheiro a balneário, ao contrário do autor do referido texto que jogou basket quando era pequenino e se revela actualmente – justiça lhe seja feita – um exímio praticante de golf.

BOLA
Feito este curto intróito, vamos então ao que interessa: bola. O Real Madrid é ou não é a melhor equipa que já vi jogar? Figo está ou não a fazer a melhor época de sempre em Espanha?
Se alguém ainda me está a ler nesta altura – eu já tinha vazado – quero dizer que, de facto, eu respondi afirmativamente às duas questões anteriores. Mas as minhas afirmações foram ditas no contexto de guerra de café e obviamente devem ser lidas, nesse contexto, como naturalmente hiperbolizadas. O que o xiita faz é retirá-las do seu contexto real e atribuir-lhes um valor literal que não têm. Para ser rigoroso eu devia ter dito «O Real Madrid de 2003/04 é uma das melhores equipas que já vi jogar futebol» e «O Figo está a fazer a melhor época desde que está no Real e talvez a segunda melhor desde que está em Espanha». Agora pegar em frases de efeito bombástico que se dizem no meio de berros e provocações e caralhadas no Ranhoso e metê-las aqui com o valor facial literal não me parece correcto. É como se eu agora viesse para aqui fazer um post porque um de nós em pleno devaneio tarado-sexualista comentou em voz alta que «aquela gaja é melhor que a jennifer lopez» ou «comi-a toda» ou «gosto mais daquela gaja que da malta do tapor». O que eu pretendi foi lançar um slogan, ser provocador…

No entanto, assumo: é para mim evidente que o Real é uma das melhores equipas que já vi jogar a bola. Até podem perder os jogos todos daqui em diante, mas isso já não invalida as belíssimas exibições que os Galácticos já nos deram a ver, inalcançáveis para o comum dos futebolistas. Acontece que o futebol para mim é arte, geometria criativa, arquitectura, ballet, dança, tudo à mistura… Algumas das melhores equipas que vi jogar perderam as competições em que se envolveram. Mas nem por isso deixaram de ser as melhores, as que perduraram na memória, as que fizeram o futebol avançar 10 anos, mesmo perdendo. Quem é que ainda hoje recordamos: o Brasil que perdeu o Mundial de Espanha ou o escrete burocrático que o ganhou no mundial dos EUA? Quem é que fez avançar o futebol uma década, a Alemanha caceteira e militarizada que ganhou o mundial de Itália ou a Argentina do Maradona que ganhou o do México?
Pois é, o critério do xiita para julgar o Real Madrid é um bocado primário; resume-se a isto: ganham são bons; perdem são um grupo de starlettes… Logo o Real perdeu a final da taça e os quartos da Liga, é mau. E quem é que é bom? Quem ganhou, o Mónaco, essa grande equipa e, acima de tudo e de todos, o porto, claro… Atão não se vê logo que o Beckham é uma vedeta que de futebol não percebe nada e bom, bom é o Manique? Que o Zidane é uma vergonha e que o deco é muito melhor? Que o Figo tá velho e o Sérgio Conceição e o Maciel tão novos? Que o Ronaldo tá gordo é o macarteney tá magro? Que o casilhas tá demasiado novo e o baía no ponto? Que o Raul é franzino e o jancaúscas é que tem cabedal? Que o roberto Carlos é tosco e o Nuno valente um tecnicista do caralho? Que o guti não sabe acertar numa bola e o costinha é que tem técnica e por aí fora? É que «como toda a gente sabe» (excelente argumento do post do xiita!!!) os galácticos do real são vedetas de cinema e não jogadores de futebol. Possivelmente as excelentes exibições que já fizeram este ano - por exemplo com o Barça em Nou Camp (por acaso venceram, 20 anos depois…), com o Valladolid (7-2, classe pura, empolgante…), com o Bayern, com o Múrcia (em que viram um 2-0), com o Bilbao, com o Atlético Madrid (no Bernabéu), com o Maiorca, com o Sevilha em Madrid (a vingança), com o Mónaco na primeira mão, etc, etc, etc - foram filmes de Hollywood protagonizados pelos tais bons actores. E. obviamente, o Figo passou ao lado disto tudo e só joga porque é português e o treinador é amigo dele… Também é claro que para perceber o que afirmo era preciso, pelo menos, ter visto os jogos, senão é como a anedota do gajo que censura Deus porque não lhe sai a lotaria, ao que Deus responde, aparecendo-lhe num estádio de futebol com a cara do zidane «mas faz ao menos uma cautela, pá»…

Mas sejamos, então rigorosos: a melhor equipa que vi jogar – se é que isto se pode dizer – talvez tenha sido o Brasil do Mundial de Espanha, com Zico, Sócrates, Júnior, Éder, Falcão, Leandro… Perdeu nos quartos de final com a Itália de Rossi, boa, mas muito inferior. De quem é que nos lembramos? Da Itália? Não. Do Brasil.
No mesmo mundial – o melhor de todos os que vi – a França de Platini, Giresse, Tigana e Battiston foi eliminada nas meias pela Alemanha de Stielicke com uma patada de Schumacher em Batistton (perna partida) decisiva no resultado final. Garanto-vos que preferia os passes do Platini às patadas do schumacher. Mas os alemães venceram.
No mundial de 74 a melhor equipa – isto é, a que praticava o futebol-arte de que eu gosto - era a Laranja Mecânica de Cruijjf, Rep, Neeskens e Kroll. Mas perdeu a final com a Alemanha, também uma excelente equipa, mas não tão boa.
No Mundial da argentina a Holanda de Haan, dos irmãos Kerkof, de Neeskens e Rensenbrink perdeu a final com uma argentina que comprou o Peru.
E, diz a história já oficial, que uma das melhores equipas que já pisou o planeta, a Hungria de Puskas e Czybor, perdeu com um grupo de caceteiros alemães a final do mundial de cinquenta e qualquer coisa. Aos 10 minutos o Puskas já estava lesionado…
Podia multiplicar os exemplos de grandes equipas que perderam com equipas inferiores – o Barcelona de Cruijjf treinador, de Romário e de Stoichkov perdeu 4-0 (quatro) com o Milão de Capello guiado por um Massaro que não tinha lugar na equipa B do Barça.
O fantástico Barça de Figo, Ronaldo, Cocu e Luís Henrique, perdeu o campeonato para o Atlético Madrid de um tal Panic, quem sabe a que é que o homem se dedica agora… E quem não se lembra da Dinamarca de Elkajer Larsen e Marten Olsen que levou 4 da quinta del buitre, mesmo sendo a melhor equipa? E o Dínamo de kiev de Yaramthchuk, de Belanov, de Dassaev, de Rats, de Demianenko que só ganhou uma taça das taças frente a um modesto Atlético de Madrid? Quem não se lembra que este mesmo Dínamo, anos mais tarde e já com alguns destes jogadores na sua fase final mas ainda excelentes, perde a meia final da taça dos campeões para um porto inferior que deixa no banco Madjer (o génio só joga a final com o bayern porque Gomes se lesiona entretanto)? Como esquecer a União Soviética de Blokine que também morreu no mundial aos pés de uma Bélgica menor? E as grandes equipas da Jugoslávia de Stoykovic que nunca ganharam nada? Ou, mais recentemente, a Espanha do último mundial, ou mesmo Portugal, eliminados pela modesta Coreia do sul?

PERDER E GANHAR
Quando o Zico e o Sócrates e o Falcão perderam aquele mundial, a compra e a circulação de mega cracks disparou em flecha e o futebol atingiu o estatuto de manicómio económico. Essa equipa contribuiu, como nenhuma outra para a explosão da paixão-futebol e para a nova era do futebol-business. A procura e o interesse dispararam em flecha em todo o mundo e praticamente todos os cracks brasileiros acabaram a jogar em Itália.
Ao contrário da ideia que geralmente passa na populaça, no futebol, o mais importante não é ganhar. É no imediato, no queimar das paixões volúveis. Mas as equipas que fazem com que o futebol seja o melhor jogo da história, que lhe dão uma durabilidade de mais de um século, que nos ficam na cabeça como ficam os saltos macacos do Mick Jagger quando tinha menos vinte anos, essas foram muitas das que citei: o Brasil do mundial de Espanha e não o do Mundial dos states; a laranja mecânica e não a Alemanha dos foerster e stielikes; a França de platini e não a Bélgica de pfaff; a argentina de maradona (aliás a equipa era só maradona, o melhor futebolista que já vi) e não a Alemanha de briguel; a Itália do mundial da argentina e não essa mesma argentina; o Barcelona de romário e não o milan de massaro; os Camarões de Milla e não a Inglaterra de Hateley; e, enfim, last but least, o Real Madrid dos galácticos e não o Mónaco honesto dos giulys e o fcporto foleiro dos costinhas e maniques…
E eu aposto que, daqui a uns anos, quando se falar na presente edição da Champions League (que já perdeu toda a piadinha sem as melhores equipas), vamo-nos todos lembrar não de uma banal final entre duas equipas medianas, mas do jogo dos quartos de final em que os galácticos do Real Madrid se deixaram perder com uma equipa voluntariosa de quem não recordamos o nome de mais do que um jogador.

PS – por acaso, quem pôde ver o atlético – real do último sábado, lá teve que gramar com mais uma lição de carácter daquele grupo de «estrelas de cinema». Viraram o jogo só com dez, pormenorzito de chacha…. O Figo esteve nos dois golos, levou a equipa literalmente às costas com arrancadas coast to coast, levou porrada e, como sempre, não se acobardou. Mas parece que «toda a gente sabe» que ele tá velho e que já foi declarado incapaz para a prática do futebol por quem percebe verdadeiramente da modalidade. No próximo jogo só não fica no banco porque o Queirós é português e nacionalista ferrenho.

Sem comentários: