Anarquia controlada
A coisa foi assim: partimos de Coimbra sábado bem cedinho direitos ao sul de Espanha, apenas com a certeza que haveríamos de voltar. Poucas mais certezas se poderiam ter naquele momento. Experimentem compartilhar o espaço de um carro, durante dez horas, com três insaciáveis operários de provocações, bandas sonoras, excertos de viagens, livros, capelas de devoção gastronómica, artes variadas e geografias mil, sendo vocês o quarto e o mais faminto de todos, e perceberão onde quero chegar. O universo inteiro resume-se a isso; quer dizer, naquelas horas, tudo o que um tipo diz ou faz resulta numa gargalhada em uníssono ou numa saraivada de retaliações violentas cujo propósito último é ouvir outra para continuar a malhar ou a rir. Vulgares pombos grasnam, rouxinóis cantam, mas um porco caminha sobre as águas ainda que elas ardam, porque o inferno é um belo lugar para queimar os chispes; bebe do cálice ainda que ele arranhe, e quando metade dele se tiver ido, deverá dizer com contagiante espanto e indisfarcável alegria: "E ainda só vou a meio!" Foi nisto que nos metemos.
O presunto de Jabugo e Cela Tendo resumidamente explicado os votos e chicotadas que presidiram ao passeio, e sem mais delongas, passo à navegação propriamente dita. Almoçamos em Jabugo, na serra de Aracena, onde as palavras do grande Camilo J. Cela não deixaram contas por saldar às queixadas esganadas porque aí ?se criam uns presuntos e uns paios de lombo dignos de um rei?. Ficou-se a saber que lagarto, são pequenas e suculentas tiras de carne retiradas do espinhaço do porco, servem-se fritas com finas rodelas de batatas levemente alouradas e acompanhadas de um frugal refogado de cebolas, pimentos e tomate. Que cocido é uma sopa de grão e feijão verde toscamente cortado que dá cor a um poderoso caldo de porco. Que Veja Real 2000, de Rioja, é um vinho aromático e guloso, bendita foi a hora que àquele tinto trouxe a sede e o sabor do presunto. Perdoa-nos Cela porque as fatias eram ?fatiazinhas muito finas e transparentes?. Heresia maior seria contrariar os costumes da boa gente que no-las serviu. Já bem basta a coca-cola que por lá se bebeu, nojo de nomeada e inenarrável, teimoso como o pagão que o pratica continuamente. Adiante. Dali até Conil foi uma estirada a ar condicionado, Ben Harper, Tom Jobim, As Bodas de Figaro e Stones, sempre os Stones! A imensidão da planície andaluza. Coisas do género: não haja dúvida que estes cabrões dos espanhóis sabem marcar as estradas!; se a Monica Lewinsky tem feito um broche ao Kennedy, não ficava com nenhuma mancha de certeza, lê aí esse parágrafo da Mancha Humana do Philip Roth; os ingleses andavam há séculos a lixar os campos de Rio Tinto perto de Huelva com as minas de ferro e pirite etc... Entre os quatro, metemos 123 filmes nos 10 melhores de sempre, três mandaram pastar um Derviche Rodopiante, dois mamaram os caramelos todos, mas só um deles contou fábricas de celulose. Por essa altura, os Jardins Genoveses de Cádiz eram uma promessa a cumprir no dia seguinte.
Conil Conil é ensolarada e ventosa. Trato-a por fêmea porque a sua marginal parece ter sido tomada por uma população de machos-Jorges, dentro de carros vulgares mas com aparelhagens de som estrondosas, audíveis a léguas, baixos ensurdecedores, autênticas discotecas ambulantes e insuportáveis que nem bardos gauleses! Jorges, por cá são aqueles que têm uma Famel Zundap XF-17 Super com jantes de duro alumínio e radiador a óleo e usam porta-chaves Ferrai à tira colo. Por Conil, também os há pelos vistos, só que requintaram a escolha, meteram ailerons nos Ibizas, cromados e escapes duplos de recuperação. Fazem uma procissão de vaidades sonoras estrada-acima-estrada-abaixo, devem meter tampões nas orelhas, ou então, são surdos como a puta que os pariu!
A tomada de Cádiz e o quase motim em Puerto de Sta Maria Cádiz pela noite dentro recebeu-nos de portas abertas. Só no-las fechou quando, por erro estratégico, mandámos o Sofista e o Milu à frente, arranjar quarto no hotel. Qualquer recepcionista sensível ao perigos de um atentado terrorista, olhando o perfil de um espécime de beduíno, cabelo rapado, olhar gazeado e tez morena, a tartamelar um castelhano à crioulo colonizado, hesita. Lógico. Evidente. Faz um esforço para tentar perceber aquela amálgama de sons sem descodificação possível ou aparente. Porém, eis que desvia o olhar para o parceiro que o acompanha, mãos nos bolsos dos jeans azul lixívia, bodyguard à civil, mortinho para dar a marrada e, tá tudo lixado: os dois quartos disponíveis há quinze minutos atrás...? já no los tiengo! Mas pronto. Lá se arranjou guarida a preço de ouro, estacionamento pago à parte e sem direito a pequeno almoço, o que não impediu um papa croissants de encher a mula às 11h. da manhã, bem convencido que estava tudo incluído no preço, pagou e nem verificou e só quando foi impiedosamente humilhado pela conta que lá deixou, é que percebeu de onde vinham os extras, o cavalgadura...! Contrariando a lógica enciclopédica do Grunfo que pensava estar o Romerijo de pernas abertas e com marisco aos saltos, à nossa espera, às 0.30h dessa noite, o que lhe ia valendo um motim a bordo seguido de empalação sumária, só no dia seguinte pudemos devorar umas quantidades generosas de marisco variado regado com umas cervejas bem geladas. Os viajantes, que não tinham pressa nos pés, nem impaciências nos espíritos, saborearam tranquilamente a luz solar daquela tarde numa esplanada rodeada por árvores seculares, entre a mansidão das sombras e o deleite de um Montecristo Nº2 oferecido pelo animal, que assim arrematou o banquete e se redimiu de um erro colossal.
A Catedral de Sevilha antes do regresso Em Sevilha, ficou-nos a admiração repetida pela Catedral, primeira vez para mim que nunca tinha medido de perto a distância colossal do solo às cúpulas, onde cabem 117 anos de construção e labor, talvez a inspiração fosse divina, mas o génio foi humano, de certeza. Bebeu-se orchata no Parque Maria Luísa, contemplou-se o encanto e a formosura tão peculiares das sevilhanas, tendo-se até e a propósito, teorizado sobre tão feliz refinamento genético e encontrado razões de origem na secularidade do império, no clima temperado e na paixão moura pelas coisas da beleza, e do prazer pelo requinte. Os viajantes entraram em Portugal no dia 25 de Abril pela tarde, por uma estrada de construção recente sem marcação alguma que não fosse um gigantesco placard que dizia ?Welcome to Stadium of Europe?, para os que chegavam e ?See You Soon?, para os que partiam. Os viajantes pensaram estar a desembarcar no porto de Dover ou nas docas de Jacksonville, depressa se recompuseram, mandaram algumas caralhadas, é certo, e outras considerações que não são para aqui chamadas. Mas talvez e porque acham que a liberdade não se celebra, vive-se, recusaram-se a ter sede ou direcção, destino ou sossego, e foram jantar e beber um copo, prometendo partir em expedição sempre e em toda a parte, navegando por terra e por onde lhes cheire.
A coisa foi assim: partimos de Coimbra sábado bem cedinho direitos ao sul de Espanha, apenas com a certeza que haveríamos de voltar. Poucas mais certezas se poderiam ter naquele momento. Experimentem compartilhar o espaço de um carro, durante dez horas, com três insaciáveis operários de provocações, bandas sonoras, excertos de viagens, livros, capelas de devoção gastronómica, artes variadas e geografias mil, sendo vocês o quarto e o mais faminto de todos, e perceberão onde quero chegar. O universo inteiro resume-se a isso; quer dizer, naquelas horas, tudo o que um tipo diz ou faz resulta numa gargalhada em uníssono ou numa saraivada de retaliações violentas cujo propósito último é ouvir outra para continuar a malhar ou a rir. Vulgares pombos grasnam, rouxinóis cantam, mas um porco caminha sobre as águas ainda que elas ardam, porque o inferno é um belo lugar para queimar os chispes; bebe do cálice ainda que ele arranhe, e quando metade dele se tiver ido, deverá dizer com contagiante espanto e indisfarcável alegria: "E ainda só vou a meio!" Foi nisto que nos metemos.
O presunto de Jabugo e Cela Tendo resumidamente explicado os votos e chicotadas que presidiram ao passeio, e sem mais delongas, passo à navegação propriamente dita. Almoçamos em Jabugo, na serra de Aracena, onde as palavras do grande Camilo J. Cela não deixaram contas por saldar às queixadas esganadas porque aí ?se criam uns presuntos e uns paios de lombo dignos de um rei?. Ficou-se a saber que lagarto, são pequenas e suculentas tiras de carne retiradas do espinhaço do porco, servem-se fritas com finas rodelas de batatas levemente alouradas e acompanhadas de um frugal refogado de cebolas, pimentos e tomate. Que cocido é uma sopa de grão e feijão verde toscamente cortado que dá cor a um poderoso caldo de porco. Que Veja Real 2000, de Rioja, é um vinho aromático e guloso, bendita foi a hora que àquele tinto trouxe a sede e o sabor do presunto. Perdoa-nos Cela porque as fatias eram ?fatiazinhas muito finas e transparentes?. Heresia maior seria contrariar os costumes da boa gente que no-las serviu. Já bem basta a coca-cola que por lá se bebeu, nojo de nomeada e inenarrável, teimoso como o pagão que o pratica continuamente. Adiante. Dali até Conil foi uma estirada a ar condicionado, Ben Harper, Tom Jobim, As Bodas de Figaro e Stones, sempre os Stones! A imensidão da planície andaluza. Coisas do género: não haja dúvida que estes cabrões dos espanhóis sabem marcar as estradas!; se a Monica Lewinsky tem feito um broche ao Kennedy, não ficava com nenhuma mancha de certeza, lê aí esse parágrafo da Mancha Humana do Philip Roth; os ingleses andavam há séculos a lixar os campos de Rio Tinto perto de Huelva com as minas de ferro e pirite etc... Entre os quatro, metemos 123 filmes nos 10 melhores de sempre, três mandaram pastar um Derviche Rodopiante, dois mamaram os caramelos todos, mas só um deles contou fábricas de celulose. Por essa altura, os Jardins Genoveses de Cádiz eram uma promessa a cumprir no dia seguinte.
Conil Conil é ensolarada e ventosa. Trato-a por fêmea porque a sua marginal parece ter sido tomada por uma população de machos-Jorges, dentro de carros vulgares mas com aparelhagens de som estrondosas, audíveis a léguas, baixos ensurdecedores, autênticas discotecas ambulantes e insuportáveis que nem bardos gauleses! Jorges, por cá são aqueles que têm uma Famel Zundap XF-17 Super com jantes de duro alumínio e radiador a óleo e usam porta-chaves Ferrai à tira colo. Por Conil, também os há pelos vistos, só que requintaram a escolha, meteram ailerons nos Ibizas, cromados e escapes duplos de recuperação. Fazem uma procissão de vaidades sonoras estrada-acima-estrada-abaixo, devem meter tampões nas orelhas, ou então, são surdos como a puta que os pariu!
A tomada de Cádiz e o quase motim em Puerto de Sta Maria Cádiz pela noite dentro recebeu-nos de portas abertas. Só no-las fechou quando, por erro estratégico, mandámos o Sofista e o Milu à frente, arranjar quarto no hotel. Qualquer recepcionista sensível ao perigos de um atentado terrorista, olhando o perfil de um espécime de beduíno, cabelo rapado, olhar gazeado e tez morena, a tartamelar um castelhano à crioulo colonizado, hesita. Lógico. Evidente. Faz um esforço para tentar perceber aquela amálgama de sons sem descodificação possível ou aparente. Porém, eis que desvia o olhar para o parceiro que o acompanha, mãos nos bolsos dos jeans azul lixívia, bodyguard à civil, mortinho para dar a marrada e, tá tudo lixado: os dois quartos disponíveis há quinze minutos atrás...? já no los tiengo! Mas pronto. Lá se arranjou guarida a preço de ouro, estacionamento pago à parte e sem direito a pequeno almoço, o que não impediu um papa croissants de encher a mula às 11h. da manhã, bem convencido que estava tudo incluído no preço, pagou e nem verificou e só quando foi impiedosamente humilhado pela conta que lá deixou, é que percebeu de onde vinham os extras, o cavalgadura...! Contrariando a lógica enciclopédica do Grunfo que pensava estar o Romerijo de pernas abertas e com marisco aos saltos, à nossa espera, às 0.30h dessa noite, o que lhe ia valendo um motim a bordo seguido de empalação sumária, só no dia seguinte pudemos devorar umas quantidades generosas de marisco variado regado com umas cervejas bem geladas. Os viajantes, que não tinham pressa nos pés, nem impaciências nos espíritos, saborearam tranquilamente a luz solar daquela tarde numa esplanada rodeada por árvores seculares, entre a mansidão das sombras e o deleite de um Montecristo Nº2 oferecido pelo animal, que assim arrematou o banquete e se redimiu de um erro colossal.
A Catedral de Sevilha antes do regresso Em Sevilha, ficou-nos a admiração repetida pela Catedral, primeira vez para mim que nunca tinha medido de perto a distância colossal do solo às cúpulas, onde cabem 117 anos de construção e labor, talvez a inspiração fosse divina, mas o génio foi humano, de certeza. Bebeu-se orchata no Parque Maria Luísa, contemplou-se o encanto e a formosura tão peculiares das sevilhanas, tendo-se até e a propósito, teorizado sobre tão feliz refinamento genético e encontrado razões de origem na secularidade do império, no clima temperado e na paixão moura pelas coisas da beleza, e do prazer pelo requinte. Os viajantes entraram em Portugal no dia 25 de Abril pela tarde, por uma estrada de construção recente sem marcação alguma que não fosse um gigantesco placard que dizia ?Welcome to Stadium of Europe?, para os que chegavam e ?See You Soon?, para os que partiam. Os viajantes pensaram estar a desembarcar no porto de Dover ou nas docas de Jacksonville, depressa se recompuseram, mandaram algumas caralhadas, é certo, e outras considerações que não são para aqui chamadas. Mas talvez e porque acham que a liberdade não se celebra, vive-se, recusaram-se a ter sede ou direcção, destino ou sossego, e foram jantar e beber um copo, prometendo partir em expedição sempre e em toda a parte, navegando por terra e por onde lhes cheire.
Posted by Mangas Fernandes to at 4/28/2004 11:16:49 PM
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