A Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, cancelou há dias, em cima da hora, a abertura do túmulo de D. Afonso Henriques. A antropóloga da Universidade de Coimbra, Eugénia Cunha, propusera-se descobrir as ossadas, liderando uma vasta equipa internacional e multidisciplinar. Cumpriu todas as formalidades e autorizações legais: da Universidade, do IPPAR e da Diocese, o que é muito significativo, direi já porquê. Quando a antropóloga se aprestava para destapar a arca funerária (segundo alguns, a urna terá sido mesmo deslocada), eis que chega a ordem de cancelamento emitida pela ministra. Refeitos da surpresa, acatada a ordem, veio a saber-se que a titular do Ministério da Cultura não foi pessoalmente consultada, pelo que, sentindo-se ultrapassada, terá ordenado a suspensão. Os prejuízos foram enormes, pois que aparelhagem sofisticadíssima estava já requisitada. Além disso, uma nova calendarização do projecto afigura-se difícil e dispendiosa, dado o facto de a equipa científica reunir membros de diversas instituições universitárias. Compatibilizar disponibilidades não será fácil. A ministra, porém, entendeu que o facto de não haver dado autorização expressa é motivo suficiente para tanto transtorno. Eu acho que não, acho que a ministra não tem razão. Não discuto a necessidade de autorização governamental. Parece que noutros países onde projectos semelhantes têm sido desenvolvidos, como em Espanha por exemplo e em relação às ossadas de Colombo, tal não é exigido. Acho até que a razão assiste à Ministra quando se declara surpreendida. A culpa, contudo, é do IPPAR e dos seus dirigentes. A antropóloga remeteu o processo e os requerimentos formais à sede própria: o IPPAR. Obteve aprovação científica pelos órgãos da Universidade e anuência simbólica das autoridades religiosas. Competia aos dirigentes do IPPAR cumprirem os trâmites hierárquicos e submeter o processo ao Ministério da Cultura. Não o fazendo, incorrem em falta e justificam procedimento disciplinar. A Ministra deve iniciá-lo. Desconfio que o não fará. Depois, a Ministra deveria analisar o pedido de autorização com carácetr de urgência e só cancelaria os trabalhos se existisse matéria grave ou suspeita de danos irreparáveis. Não sendo o caso, como não era, nada justifica a decisão tomada.
No meio desta baralhada, e além do prejuízo causado a quem foi cumpridor, ainda se colocou em causa foi a pertinência científica do projecto. Apesar do prestígio dos nomes envolvidos, apesar do enquadramento institucional, apesar dos pareceres de autoridades eminentíssimas como o prof. José Mattoso que atesta a validade do projecto, há quem ache desprezíveis os intentos. Há quem diga que é irrelevante saber a altura de Afonso Henriques, as suas doenças, as lesões e maleitas, o seu aspecto fisionómico. Há quem declare a desnecessidade de tudo isto, incluindo o que se possa vir a apurar sobre as dietas alimentares ou a colheita de amostras de DNA. Eu, na minha humildade, concordo com quem assim pensa. Tudo isto é desnecessário e não lhe acho qualquer pertinência. No entanto, acho que é a mais importante irrelevância da História de Portugal e, por isso, deve ser cometida. Deve-se abrir o túmulo e apurar tudo sobre o rei. Não porque tenha importância em si, mas porque tal acto fará do rei simples objecto de curiosidade e análise científica. E isto é importantíssimo. A carga simbólica que envolve o rei dissipar-se-á depois de, durante quase um milénio, ter sido objecto das mais diversas devoções e mistificações. Desde os discursos restauracionistas, a cargo dos frades alcobacences, que por óbvias razões ideológicas mitificaram a memória do Fundador, até ao nacionalismo romântico e liberal que, em Oitocentos, encontrou no estudo das origens a raiz da identidade nacional em construção, até ao tradicionalismo contra-revolucionário protagonizado por D. Miguel que chegou mesmo a desenterrar as ossadas do rei em quem via o símbolo máximo da autoridade cuja preservação se impunha defender contra o liberalismo ameaçador, até ao catolicismo mais beato que chegou a propor e a iniciar um processo de canonização do rei numa era que a Igreja se via ameaçada pelo processo de secularização e laicização da sociedade, sem esquecer a sobreposição que o providencialismo historicista, autoritário e nacionalista do Estado Novo que promoveu uma sobreposição interesseira entre a memória do rei e a imagem de Oliveira Salazar. Após a revolução de Abril, a memória do rei sofreu um processo de depuração pela pior via: o esquecimento.
Agora, por fim, as ossadas parecem remeter-se à sua condição: ossos estudáveis. É curioso que, pela primeira vez na História longa das ossadas, de quase um milénio, elas se considerem pela primeira vez como simples ossadas. O olhar científico, a desideologização dos tempos, promove esta nova abordagem, a não ser que consideremos, e é essa a minha opinião, que esta cientificização das relíquias é em si uma ideologia. Assim, o que é muito curioso e significativo é que as autoridades eclesiásticas tenham aceitado pacificamente que o féretro fosse objecto de banalização ao constituir-se como objecto de estudo, ao passo que as autoridades civis que muito recentemente elevaram os túmulos régios de Santa Cruz à dignidade de Panteão Nacional, tenham requerido tantas formalidades e exigido tanto rigor no processo, alegando a delicadeza do assunto, o que parece demonstrar que as ossadas passaram da tutela religiosa da Igreja Católica para a tutela cívica do Estado. Assim posto, a recusa ministerial é uma forma de apropriação simbólica do património quase milenar das ossadas afonsinas.
No meio desta baralhada, e além do prejuízo causado a quem foi cumpridor, ainda se colocou em causa foi a pertinência científica do projecto. Apesar do prestígio dos nomes envolvidos, apesar do enquadramento institucional, apesar dos pareceres de autoridades eminentíssimas como o prof. José Mattoso que atesta a validade do projecto, há quem ache desprezíveis os intentos. Há quem diga que é irrelevante saber a altura de Afonso Henriques, as suas doenças, as lesões e maleitas, o seu aspecto fisionómico. Há quem declare a desnecessidade de tudo isto, incluindo o que se possa vir a apurar sobre as dietas alimentares ou a colheita de amostras de DNA. Eu, na minha humildade, concordo com quem assim pensa. Tudo isto é desnecessário e não lhe acho qualquer pertinência. No entanto, acho que é a mais importante irrelevância da História de Portugal e, por isso, deve ser cometida. Deve-se abrir o túmulo e apurar tudo sobre o rei. Não porque tenha importância em si, mas porque tal acto fará do rei simples objecto de curiosidade e análise científica. E isto é importantíssimo. A carga simbólica que envolve o rei dissipar-se-á depois de, durante quase um milénio, ter sido objecto das mais diversas devoções e mistificações. Desde os discursos restauracionistas, a cargo dos frades alcobacences, que por óbvias razões ideológicas mitificaram a memória do Fundador, até ao nacionalismo romântico e liberal que, em Oitocentos, encontrou no estudo das origens a raiz da identidade nacional em construção, até ao tradicionalismo contra-revolucionário protagonizado por D. Miguel que chegou mesmo a desenterrar as ossadas do rei em quem via o símbolo máximo da autoridade cuja preservação se impunha defender contra o liberalismo ameaçador, até ao catolicismo mais beato que chegou a propor e a iniciar um processo de canonização do rei numa era que a Igreja se via ameaçada pelo processo de secularização e laicização da sociedade, sem esquecer a sobreposição que o providencialismo historicista, autoritário e nacionalista do Estado Novo que promoveu uma sobreposição interesseira entre a memória do rei e a imagem de Oliveira Salazar. Após a revolução de Abril, a memória do rei sofreu um processo de depuração pela pior via: o esquecimento.
Agora, por fim, as ossadas parecem remeter-se à sua condição: ossos estudáveis. É curioso que, pela primeira vez na História longa das ossadas, de quase um milénio, elas se considerem pela primeira vez como simples ossadas. O olhar científico, a desideologização dos tempos, promove esta nova abordagem, a não ser que consideremos, e é essa a minha opinião, que esta cientificização das relíquias é em si uma ideologia. Assim, o que é muito curioso e significativo é que as autoridades eclesiásticas tenham aceitado pacificamente que o féretro fosse objecto de banalização ao constituir-se como objecto de estudo, ao passo que as autoridades civis que muito recentemente elevaram os túmulos régios de Santa Cruz à dignidade de Panteão Nacional, tenham requerido tantas formalidades e exigido tanto rigor no processo, alegando a delicadeza do assunto, o que parece demonstrar que as ossadas passaram da tutela religiosa da Igreja Católica para a tutela cívica do Estado. Assim posto, a recusa ministerial é uma forma de apropriação simbólica do património quase milenar das ossadas afonsinas.
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