17/08/06

Francis Obikwelu e Maria João Pires, por Francis Pires

Confesso que não me comovo pela razão, que afinal é minha, que tudo o que meta trapos nacionalistas, vulgo bandeiras, mais hinos e cerimónias protocolares me arrepia a pele e causa repulsa. Mas este nigeriano intriga-me. Melhor, este português de gema intriga-me e suscita-me uma profundíssima admiração. Para mim, é português quem quer. Ou devia ser. O mesmo deveria valer para as outras, todas, as nacionalidades. Ninguém deveria ser discriminado à nascença por uma casualidade que não pôde influenciar, por uma circunstância que não atenta ao mérito: o local onde se é parido. Se as históricas discriminações com base na cor da pele ou na confissão religiosa foram, e são, horrorosas, muito mais o é a segregação - mais condenação do que segregação para a maior parte das trágicas histórias do Terceiro Mundo - com base na naturalidade. É inaceitável para qualquer mente sensível. É imoral, por exemplo, que um primeiro-violino da Orquestra de Kiev ande agarrado a um martelo pneumático nas obras da construção civil, sem qualquer protecção do Estado, sem Segurança Social e sujeito aos abusos dos empreiteiros que aproveitam a mínima fragilidade alheia para facturar mais uns tostões, enquanto as nossas escolas estão infestadas de diplomados uma qualquer academia chunga a ensinar as crianças a soprar no pífaro e a cantar o solidó. E os papéis não se invertem, como deviam, por causa de um bilhetezinho, dito de identidade, que confere a um o privilégio da nacionalidade e a outro a maldição da clandestinidade!
Por isso, a história de Francis Obikwelu é a mais bela e dignificante de todas as figuras públicas que enxameiam o nosso quotidiano. Numa certa medida, pelo seu passado pessoal, e dada a projecção mundial que atingiu, Obikwelu é o mais digno de todos os portugueses, isto se a dignidade resultar, como é bom que resulte, de um misto de mérito pessoal, sucesso, preserverança, trabalho, luta contra a adversidade e a injustiça, humildade e dedicação. Nenhum benefício recebeu do berço. Fosse a família ou a Pátria. Ninguém o ajudou, lutou contra todos. Teve a coragem de desertar e abdicar do país no qual não se reconhecia - a Nigéria. E fez-se ao caminho, sozinho. Humilde, empregou-se na construção civil. Uma cidadã inglesa a residir no Algarve reparou nas suas capacidades e recomendou-o a um amigo que era treinador de atletismo. A partir daí foi um galgar de degraus até ao topo do atletismo mundial onde é uma das figuras. Treina-se em Espanha, porque cá não há condições. Entretanto, no Algarve onde Obikwelu transportava baldes de massa dando serventia na construção civil, vai ganhando teias de aranha aquele que é o maior monumento à estupidez nacional: o Estádio Intermunicipal Faro-Loulé. Ou seja, para o Obikwelu correr não há pista, mas para o Farense, o Louletano, e quem sabe o Almansilense, que agonizam nas divisões secundaríssimas do futebol luso, lá está um estádio com 30 mil lugares, que só com os burros todos do país se encheria e exíguo se revelaria. Brilhante!
Como é fácil de ver, Obikwelu não deve nada a este país. O país tratou-o mal, explorou-o, não lhe soube descobrir o talento. Ainda agora, o destaque que deram às suas vitórias não é de modo nenhum condizente com a dimensão dos seus feitos. Lembremos que o país delirou quando o Monteiro da Fórmula 1 subiu ao podium da mais vergonhosa corrida automobilística de que há memória. Quando todos desistiram, como forma de protesto contra o despotismo da organização, o Monteiro correu, com mais dois fura-greves e ficou em terceiro. O país foi delirou, desfraldou os trapos e cantou os hinos da praxe. Recordo também como o Pedro Lamy que uma vez, se a memória me não falha na Austrália, ganhou um pontito numa corrida, e logo o Sampaio lhe deu uma medalha. Foi o delírio. Com o Hóquei em Patins, o mais paroquiano dos desportos, cada vitrória dos moços é cantada como se fosse um feito épico. Livramento e Ramalhete são Aquiles Ajaxes na memória da imprensa especializada. E ninguém, nem Joaquim Agostinho, nem Carlos Lopes, nem Rosa Mota, nem Eusébio, nem 10 Figos, alguma vez lograram o que este digno português de nome nigeriano agora alcançou. Se Lopes e Mota têm pavilhão com o seu nome, Obikwelu, no mínimo, mereceria que o Pavilhão Atlântico fosse rebaptizado Pavilhão Obikwelu! É que ele é duplo campeão europeu dos 100 e 200 metros, uma das mais difíceis e competitivas especialidades do desporto mundial. Nos 100 metros é, aliás, bicampeão, pois que nos últimos campeonatos quem lhe ganhou foi batoteiro e o título foi-lhe retirado. Lembremos que Agostinho se encharcava em doping e tal não lhe impediu a consagração pública. Além dos feitos olímpicos que já alcançou também, Francis Obikwelu, estando ainda no activo, é já o maior desportista português de todos os tempos. Este facto parece não estar a ser devidamente salientado. O país , mais uma vez, não é justo. E, todavia, Francis insiste em correr sob as cores nacionais e a desfraldar o trapo verde-rubro após cada uma das suas retumbantes vitórias. Para mim, isto é um enigma.
Entretanto, a excelentíssima senhora Maria João Pires nasceu num país, apesar de tudo, civilizado. Teve berço. Nunca foi forçada a trabalhar nas obras. Teve as condições pelo menos suficientes para se tornar uma das mais importantes e consagradas executantes musicais da actualidade. Devo dizer que tal também não me comove. Aprecio-lhe o talento como se ela fosse polaca, nigeriana ou servo-croata. É esta uma das características da actividade artística: a sua universalidade. Quando se atinge um certo patamar de qualidade e excelência, o artista e a sua arte tornam-se universais, libertam-se das circunstâncias temporal e espacial. Eternizam-se. Por isso, e por exemplo, Picasso não é espanhol, nem Rostropovich é russo, ou americano, ou israelita. É do Mundo! Por isso, em Salzburgo, por exemplo ainda, não há cerimónias protocolares de entrega de medalhas, nem hinos cantados.
Por estas razões, acho irrelevante que Maria João Pires se tenha ausentado para o Brasil, para a Baía. Eduardo Prado Coelho disse que era um belo sítio para viver. Não sei se quis dizer para se «exilar», eu digo que é um belo sítio para amuar. Porque a senhora está amuada. Declarou-se zangada com Portugal, bateu com a porta e foi para o Brasil. E porquê? Porque, segundo a genial pianista, o Estado não a apoia. Ora, o Estado não só a apoia, com apoios que davam para alimentar e treinar para aí alguns mil Obikwelus, como não vê a justificação dos gastos para os apoios fornecidos. Como referiu o mesmo Eduardo Prado Coelho, nem um simples Deve / Haver rabiscado em papel de embrulho, à maneira das antigas mercearias de bairro, a senhora se dignou apresentar. Amuou, declarou-se cansada do país e debandou para o Brasil, não sem antes descansar os indígenas garantindo que o projecto de Belgais prosseguirá. Esperemos que sim e com as despesas justificadas. Se quiser continuar as sustentar-se com fundos públicos, claro. Pois passe muito bem, minha senhora, continue Vossa Excelência a ser o que é, uma das mais geniais pianistas da actualidade, que nós cá continuaremos a sobreviver, como o temos feito melhor ou pior ao longo do último milénio, quase sempre sem a presença de Vossa Senhoria. Teremos certamente o prazer de acompanhar a nossa existência futura e próxima ao som das suas magníficas interpretações que certamente a senhora não deixará de gravar para nosso (do Mundo, entenda-se) usufruto. Prometo que nas próximas Olimpíadas assistirei aos sprints de Obikwelu ao som das suas interpretações de Brahms, Debussy, Chopin ou Mozart, conforme o que Vossa Senhoria entender mais apropriado e se, por maravilhoso acaso atentar neste desabafo e se dignar adiantar uma sugestão. Como é óbvio.
Para finalizar, uma perguntazinha às autoridades competentes: a senhora não é acusada porquê? Porque não vai responder a tribunal? Se fosse eu a não dar justificação a uns subsídios atribuídos no valor de uns largos milhares de contos, a coisa ficava assim? Podia ir para o Brasil descansado que ninguém me impedia?

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