25/08/06

O idiota, por Abd al-Malik

O idiota que aqui vedes retratado pelo pincel de Cristóvão de Morais deu nome a um mito idiota. E mais não fez. Há já muito que me dedico a estudar e a tentar perceber, sem sucesso diga-se, com uma profundidade que julgo inigualável, as razões da admiração que alguns dirigem a este idiota. E não me refiro a figuras de segundo plano: Pessoa basta. Mas há muitos outros. Romantizado ou mitificado, a verdade é que o idiota tem na memória colectiva portuguesa um lugar que não devia ter. É certo que muitos houve também, com António Sérgio à cabeça, que não perdoaram a idiotice ao idiota. Mas ainda assim, apesar de todas as evidências e contra toda a razoabilidade há quem continue a condescender com o idiota e a apresentá-lo como exemplo de espiritualidade sonhadora, grandiosidade e idealismo.

Há pouco, António Villacorta Baños-Garcia, um estudioso espanhol, publicou uma nova biografia do idiota. Deve dizer-se que o livro, apesar de correcto e bem escrito, fazendo um retrato isento do idiota, ao justamente considerá-lo um idiota irresponsável, não traz nada de novo. Excepção feita a uma sugestão desnecessária: que se colham amostras do túmulo do idiota para análise laboratorial do ADN para saber se realmente ali se encontram depositados os restos mortais do idiota. Assim se esclareceria uma dúvida que, em grande medida, foi a razão do mito. Eu, por mim, acho desnecessário. O idiota será sempre o idiota, quer os seus restos jazam, incógnitos no areal africano, quer sejam os autênticos depositados nos Jerónimos.

Muitas razões há para consagrar o idiota não só como o maior idiota da história de Portugal como um dos maiores idiotas da história da Europa. Esta basta: no dia 4 de Agosto de 1578, em apenas 3 horas, contra todos os avisos e conselhos, contra toda a prudência, sem nenhuma necessidade, com uma táctica militar completamente idiota, o idiota afundou-se juntamente com milhares e milhares de soldados. Não apenas portugueses, porque sob o seu comando combatiam castelhanos, alemães, italianos e mouros aliados. Foi a maior carnificina da história portuguesa e uma das maiores tragédias militares da história da Europa. Em apenas 3 horas, repito, soçobraram milhares e milhares de combatentes, de forma inglória, depois de haverem sido conduzidos para a desgraça mais do que adivinhável de forma absolutamente inconsciente e irresponsável. Gente bisonha, arrancada ao arado, incapaz de pagar o suborno que os isentaria da morte. Outros, cavaleiros irresponsáveis, aduladores do idiota, sedentos de glória. Os «últimos cruzados medievais», lhe chamam os admiradores contemporâneos, «o primeiro pateta moderno» lhe chamou acertadamente António Sérgio. Não se sabe ao certo quantos ali pereceram. Baños-Garcia fala em 14 000 sem especificar se contabiliza o total ou apenas os caídos no exército do idiota. Julgo tratar-se do total e que a fonte é Queiroz Velloso. Os números variam muito, todavia. Por exemplo, Aquilino Ribeiro, citando fontes árabes que não identifica, classifica a batalha de Alcácer como «uma carnificina cruel e despiedosa» onde terão perecido 6000 portugueses e apenas 18 mouros!? Noutra versão, José de Esaguy afiança, citando também «cronistas árabes nos seus escritos», que foi maior o número de mortos entre o exército mouro, o que «nos trouxe uma vitória passageira.» O melhor mesmo é desistir de encontrar um número mais ou menos seguro, pois as versões são várias. Carlos Leite afirma que Alcácer-Quibir «não foi uma vergonha; e, se foi uma desgraça não foi uma nódoa na história de Portugal», pois a batalha esteve quase ganha. Logo a seguir adianta 12000 mortos cristãos. Queiroz Velloso diz, por seu turno, que se tratou da batalha mais sangrenta que a Berbéria já presenciou e dá entre 5 e 6 mil mortos mouros, contra 7 ou 8 mil cristãos. O padre José de Castro cita um documento do Arquivo Secreto do Vaticano que fala em 50000 mouros tombados em combate. Afonso Dornellas diz ter recolhido de fonte marroquina a seguinte contabilidade: 10 mil baixas cristãs e 18 mil muçulmanas. Fiquemos por aqui.

Seja como for, em três horas morreram mais soldados do que em 13 anos de guerra colonial em três frentes, noutra guerra igualmente idiota. Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes contabilizam, de 1961 a 1974, nas três frentes, 4027 mortos em combate. O resto, até ao total 8290, foram acidentes de viação (1480), acidentes com armas de fogo (785) e causas indeterminadas (1998). Manoel de Oliveira e Manuel Alegre, entre outros, já traçaram o paralelismo entre as duas desgraças. É curioso o paralelismo, mas mais curioso é comparar o número de baixas para se constatar a dimensão da idiotice sebástica. Em apenas 3 horas! E nem se calcule a relação das baixas com os efectivos gerais da população, porque então a dimensão da tragédia é quase apocalíptica! Como é que este idiota pode ainda ser objecto de admiração e ser elevado ao estatuto de símbolo nacional?

No fim da batalha, as descrições são horríveis. O saque foi miserável. Os corpos entraram em putrefacção acelerada, devido ao calor tórrido. Das montanhas desceram os salteadores que se apossaram dos cadáveres. Despiram-nos, profanaram-nos, sentenciavam com um golpe de misericórdia os feridos suplicantes que não tinham valor para o resgate ou que estavam moribundos. Capturavam os feridos ligeiros ou valiosos. Foi uma orgia bárbara de sangue, indignidade e crueldade, por entre o cheiro da pólvora e da vergonha. O responsável tem nome. Foi um, exclusivamente: O idiota que ali vedes retratado pelo pincel de Cristóvão de Morais.

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