15/08/06

Um Espectáculo Litúrgico, por Big Jagger

A 12 de Agosto, no Estádio do Dragão, quase 50 mil pessoas ouviram Sir Mick Jagger falar em português: "É muito bom tocar nesta linda cidade pela primeira vez." Os bilhetes não esgotaram, apesar da imensa mole humana, e foi lindo ver os candongueiros a tentarem vender os bilhetes desesperadamente ao preço de custo.
A primeira parte coube aos Dandy Warhols. A banda, ainda que já consagrada, era-me desconhecida e foi uma agradável surpresa. O Estádio estava então pela metade. Houve quase uma hora de espera até que os Stones entrassem em palco. Entretanto, a malta do merchandising oficial vendia de tudo: pins dos Stones, T-shirts dos Stones, porta-chaves dos Stones, bonés dos Stones, luzinhas cintilantes, com o logotipo dos Stones, etc. Nos bares vendiam-se hot dogs e coke, cerveja e hot dogs, tudo a preços exorbitantes. A longa espera estava calculada. Por mais que o público assobiasse e aplaudisse de forma cadenciada a exigir a entrada de Jagger&Richards, a verdade é que o esforço era vão. Eles são profissionais e são míticos. Entram quando quiserem. Assobiem se bem entenderem e comprem T-shirts, bebam coke e comam hot dogs. Também podem enviar um sms para o 4004 com a palavra "Stones" e habilitam-se a assistir ao espectáculo de um varandim especial montado no palco principal. Aquilo é uma máquina de fazer dinheiro. Mas há uma garantia: qualidade e profissionalismo.
Enquanto isso, o relvado ia enchendo. A cada um dos lados, sob as torres de iluminação, montaram-se dois pequenos estrados com cadeiras de plástico para os VIP's! Está mal! É uma idiotice. Ou se é VIP e não se vai para a relva para junto do povo, ou se é povo na relva sem qualquer tratamento VIP. O misto é assim como comer sardinha assada em cerâmica de Limoges com talher de prata e vinho a martelo em cristal de Veneza. De repente, as luzes apagam-se, ouve-se o riff de Keith Richards e logo a seguir entram diabólicos, com Jagger à frente, o écran luminoso num vórtice colorido de imagens: Jumpin' Jack Flash! É o delírio. O som está excessivamente eléctrico, ensurdece, mas ninguém se importa. O ecran continua a fazer desfilar uma imagem de um Big Bang cósmico numa espiral de imagens retalhadas que vai desaguar no cover do último album da banda, «A Bigger Bang» que é um remake da obra de Joseph Wright (1734-1797), A Philosopher Lecturing with a Mechanical Planetary. A seguir, sem deixar passar o impacto inicial, e ainda no mesmo ritmo estridente, vem o It's Only Rock'n'Roll. O espectáculo ainda agora começou e já valeu a pena. Depois, o primeiro tema do último album: Oh No Not You Again. Além desta, e do último CD com 16 originais, apenas tocariam mais dois: Streets of Love e Rough Justice. No geral, o show foi servido à base de reinterpretações de temas históricos, com grande liberdade de improvisação e novas versões, especialmente no final quando, no segundo encore, tocam Satisfaction numa versão apoteótica, orgástica, com fogo de artifício a ejacular luz de ambos os lados do palco, com o coro a repetir o refrão numa versão Soul, Jagger a menear-se como se fosse uma Josephine Baker e Richards a divagar na guitarra com Ron Wood. O alinhamento foi mais ou menos este: Let's Spend The Night Together, Ruby Tuesdey, Tumbling Dice e Midnight Rambler. Segue-se uma magnífica homenagem a Ray Charles, aparecendo a foto no painel gigante, e um dueto extraordinário com Lisa Bishop: The Night Time is the Right Time. Inesquecível. Se aquilo fosse uma orgia, que não era, era mais litúrgico, o público já estaria todo molhado para aí com quatro ou cinco orgasmos em cima. Era tempo para o descanso, antes de uma segunda investida. Nessa altura reparei num hábito completamente idiota, além daquele de ir para os concertos com bandeiras de Portugal, que é o de ver o espectáculo através do minúsculo visor do telemóvel! É completamente idiota, mas é verdade: há milhares de pessoas que vão com o telefone, ou com a máquina fotográfica digital, e passam o santo concerto a espreitar para o monitor LCD e a disparar sucessivamente como se aquilo fosse um safari fotográfico! Não consigo entender. É a altura de Keith cantar o seu par de canções, enquanto Jagger recolhe aos bastidores para um justo descanso. Richards, que recusou ser Sir, não falou em português. Ele não é simpático, nem cavalheiro. Limita-se a um «It's nice to be here», mas acaba por não resistir e acrescenta: «What the hell... it's nice to be everywhere!» e arranca com Slipping Away e Before They Make Me Run
A seguir vem a procissão. Como é tradicional nos concertos dos Stones, a banda atravessa a relva até ao topo oposto ao palco principal. Normalmente vão a pé e aos pulos. Desta vez, porém, do palco principal destacou-se uma plataforma rectangular que se sobrelevou ligeiramente e para onde previamente o staff empurrara Charlie Watts com os seus tambores e, depois, ao som de Miss You, o rectângulo, subitamente iluminado com luzes a todo o perímetro, deslizou suavemente como se fosse um andor. Jagger parecia a imagem de Nossa Senhora de Fátima aos pulos, Richards e Wood esgalhavam as guitarras e Watts lá estava a tamborilar fleumático e paciente como se fosse uma competentíssima babby-sitter. No final do percurso, e por entre a ovação delirante do público bafejado pela atenção, tocaram She's So Cold e regressaram com uma electrizante Honky Tonk Women, tal qual a Rainha Santa Isabel que regressa ao alto de Santa Clara. Cumprido o trajecto, acendem-se as luzes e uma enorme língua insuflável apareceu no palco, lambendo o público num cunnilingus monumental! Estava tudo no ponto. Se fosse uma orgia, que não era, era mais uma liturgia, estaríamos todos prontos para a enrabadela final. E lá veio ela: SYMPATHY FOR THE DEVIL! As luzes vermelhas, Jagger de cartola vermelha e casaca de veludo vermelho, no cimo do palco dois enormes lança-chamas cuspiam diabólicas labaredas alaranjadas. Jagger corria que nem um louco, de um lado para o outro do palco, trepava ao varandim central e incitava o público: UUUH-UUUHH, e o público respondia, gemendo satisfeito e saciado: UUUH-UUUHH! Richards e Wood esgalhavam as guitarras enquanto Watts, paciente, assistia impávido batendo as baquetas. Prostrados, enfartados de gozo, todos os membros do público se preparavam para respirar quando soam os acordes de Brown Sugar. Oh, meu Deus, aí vem o gajo outra vez, cheio de pica!, diríamos nós se aquilo fosse uma orgia, que não era, era mais uma liturgia. E lá voltávamos nós a berrar em uníssono o refrão. Acabou-se. O encore foi o anunciado e previsto. Além de Satisfaction, You Can't Always Get What You Want, cantado num coro desafinado de cinquenta mil vozes. Aplausos e ponto final. Fogo de artifício, uns efeitos especiais e escusam de bater mais palmas, de pedir mais encores. Entraram às dez horas certas, quando quiseram e saem agora. São profissionais. O espectáculo acabou. Não há afectos, além das artificiais frases feitas de Mick Jagger ditas em português que, por artificiais, não são nada afectuosas. Se aquilo fosse uma orgia, que não foi, foi mais uma liturgia, dir-se-ia que foi uma sessão magnífica de sexo profissional. No final é pagar e vazar. Não há pequeno-almoço, nem veremos Jagger desmaquilhado nem Richards em pijama.

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