04/12/07

Jazz de Câmara, por Cantaloupe

Blues on Bach do The Modern Jazz Quartet, editado em 1973, é uma obra prima. O disco combina coisas aparentemente inconciliáveis como o rigor matemático da música barroca e a liberdade de improviso do jazz.

The Modern Jazz Quartet foi formado em 1952 por Milt Jackson (vibrafone), John Lewis (piano, director musical), Percy Heath (contrabaixo), e Kenny Clarke (bateria). Em 1955 Connie Kay substituiu Clarke. Para além do brilhantismo dos seus intérpretes, a banda ficou na história pela criação daquilo que podemos definir como um novo género musical: o «jazz de câmara», isto é a tentativa de combinar o jazz e a música clássica. A ideia não foi muito bem recebida nem pelos puristas da clássica nem pelos do jazz. Os primeiros viram naquela música uma pauperização da música erudita; os segundos acusaram o MJQ de intelectualizarem o jazz, seja lá o que isso for. Os velhos complexos da contaminação entre os níveis culturais high e low que segundo os fundamentalistas não se podem misturar…

Às vezes estou a ouvir Blues on Bach e pergunto a alguém que esteja presente que género de música acha que é esta. Ainda não houve ninguém a dizer simplesmente jazz nem clássica. As pessoas ficam confusas: parece música barroca, mas este vibrafone… E bateria? É estranho…
Quem ouve este disco tem a sensação de que Bach é um compositor contemporâneo e não o mais genial dos compositores barrocos de toda a história. Ouço Precious Joy e imagino um Bach americano e preto e não alemão e branco a tocar vibrafone e não órgão. De facto o disco foi gravado em 1973 mas podia perfeitamente ter sido ontem. Ou amanhã.

Conciliando brilhantemente duas linguagens aparentemente inconciliáveis – o jazz e a música erudita, The Modern Jazz Quartet consegue criar uma nova forma de expressão musical. É claro que eles não são os únicos músicos de jazz a fazerem incursões no território da música clássica. Basta lembrar as excelentes interpretações de Keith Jarreth de Mozart. Mas aqui o MJQ dá um passo mais além: é que, sendo excelentes, as interpretações de Jarreth não são muito diferentes da interpretação de outros músicos de formação clássica. Ouvimos os concertos para piano de Mozart ou as variações Goldberg de Bach, interpretadas por Jarreth, e a linguagem é clássica. Não sabemos, a não ser que nos digam, que é um músico de jazz que está a tocar. Mas a interpretação de Bach do MJQ é feita na linguagem jazz e não na linguagem clássica. É nesse sentido que – podendo gostar-se ou não – o MJQ vai mais além que tudo o que foi feito neste domínio.

Mas apesar dos intérpretes serem tão heterodoxos sente-se que é ainda Bach que estamos a ouvir. E, como tudo o que é Bach, estas composiçõoes roçam a perfeição. Dir-se-ia que estas músicas não foram inventadas, mas descobertas. Simplesmente estavam lá e Bach limitou-se (!) a descobri-las. A música de Bach tem a simplicidade (ou a complexidade como se preferir) da matemática: quando somamos 2+2 o resultado é necessariamente 4 e não pode ser outro. E estas músicas têm a mesma consistência ontológica: não há na música de Bach notas a mais nem a menos. São aquelas porque, como na matemática, só podiam ser aquelas nem mais nem menos e nenhumas outras.

São assim os grandes génios, sinto o mesmo quando ouço Mozart, dá a impressão que estas músicas já existiam algures num eterno limbo Platónico e que estes génios foram lá acima descobri-las e recolhê-las para nossa felicidade. É também nisso que este disco é brillhante - apesar da apropriação criativa que fazem da música de Bach, os intérpretes respeitam os limites, não deixam que Bach seja um simples ponto de partida um motivo para desvarios e improvisos sem norte (às vezes isso irrita-me nalgum jazz). Não. Do princípio ao fim do disco eles têm sempre presente a música de Bach. E embora a interpretem à sua maneira, é o rigor, a perfeição e a matemática de Bach que ainda reconhecemos aqui.

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