14/03/08

A Cidade - I, por Mangas


Um homem caminha na direcção do cais, a mão direita no bolso do casaco, a esquerda segura três balões presos por fios uns palmos acima da cabeça. Está um chinês sentado junto à margem com um macaco nos ombros. O macaco come diospiros. Nunca vi nenhum chinês usar óculos quadrados. São sempre redondos como os diospiros.

Matulões escanzelados que vendem recuerdos aldrabados, sorvetes remelosos, cadeiras ao sol, mercenários armados de Ray-Ban modelo aviador-sem-asas. Domingo à tarde no parque com as famílias são convenientes para sacudir o jejum dos sapatos. Perseguem os putos divertidos fingindo que são monstros quando passam o resto da semana a fingir que o não são. Um negro infectado por um trompete murmura o voo das aves migratórias quando sopra. Delicadas improvisações de mágoa e furor. A minha missão é traduzir esses acordes para decifrar o silêncio que pressinto em meu redor, em redor das gentes cujas paixões os fragiliza e faz deles criaturas nuas e crentes. Abrir as portas do sol, é incitar as formigas a rastejar.

Um tipo a cair de bêbado aproxima-se do pontão sobre o oceano e começa a mijar. Explica em voz alta que mija para as cinzas da mulher que foram lançadas ao mar. É como se mijasse para a sua campa. Solta uma gargalhada. Sai dali, move-se entre os passos e o bar mais próximo. Se lhe meterem um pepino nas mãos, transforma-se em pickle.

Um fio dourado de luz reflecte o castanho das árvores abandonadas. Algumas andorinhas sobre as quais o Zeca Afonso tropeça os olhos como no voo de uma gaivota. Há uma harmonia superior e imprevisível no meio disto tudo que me aplaca o cinismo. Aproximo-me do tipo dos balões e proponho-lhe comprar um. Que não. Que o perdoasse, mas não estavam à venda. Confessou-me que os segurava apenas para que o mantivessem de pé, na vertical.

Eu também nunca disse que não acreditava em Deus. Acredito apenas que Ele não existe, nem nunca existiu. Esta deve ser a minha confissão, mas eu não peço perdão.
Foto: Rodney Smith

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