02/03/08

Cinema e Política - I, por Mangas

Se Nancy Hanks regressasse como um fantasma,
Procurando notícias do que mais amou,
Começaria por perguntar:
“Onde está o meu filho?
O que aconteceu ao Abe?
Que fez ele?
Não sabem do meu filho?
Tornou-se num homem alto?
Divertiu-se?
Aprendeu a ler?
Foi para a cidade?
Sabem o seu nome?
E deu-se bem? “
in, Nancy Hanks, de Rosemary Benet.


Mais do que um manifesto biográfico, Young Mr. Lincoln, (A Grande Esperança, 1939), é a homenagem de Ford a Abraham Lincoln antes de tornar Presidente. O filme não vai trilhar os aspectos amplamente conhecidos do público, mas antes centrar a sua atenção na espinha dorsal de um homem que, a seu tempo, foi primus inter pares, bem como evidenciar todas essas características de personalidade que forjaram o líder: a serenidade e a irreverência, a rectidão e a tolerância, os primeiros passos e o emergente sentido político no compromisso que o jovem advogado assume com a justiça. Lincoln como bastião moral do princípio incontornável de justice for all, definitivamente, o passado embrionário de uma dos maiores mitos da História americana. Um Lincoln que foi também um lambão de tartes de pêssego, um exímio rachador de troncos e um batoteiro no jogo da corda. Apaixonado por livros e pelo Direito, do “…direito sobre a vida, reputação e liberdade...” na referência explicita ao Blackstones Commentaries, Lincoln visto como a luz que aponta o caminho e rasga as trevas da ignorância em seu redor. A interpretação de Henry Fonda é enorme! Na candura do olhar, na transgressão do andar, ou quando se ergue no alpendre, aquele rosto granítico em forma de caveira, as sombras em volta dos olhos, os braços que estorvam à procura de um poiso seguro e, timidamente, coloca na voz o improviso do seu discurso de campanha: “As minhas políticas são breves e doces. Sou a favor de um Banco Nacional, de um sistema interno de melhoramentos e de uma tarifa altamente protectora. São estes os meus sentimentos e os meus princípios políticos. Senão tudo continuará na mesma.”

Em Mr. Smith Goes to Washington, (Peço a Palavra, 1939), Frank Capra desenvolve um brilhante argumento de histórias cruzadas onde mais uma vez, como em tantas outras da sua filmografia, o herói anónimo, o cidadão comum fiel representante dos sonhos e expectativas das grandes massas ganha destaque e se transcende, batendo-se até à exaustão pelo ideal em que acredita. É o Povo e a força das suas convicções que ali jamais serão silenciadas! O filme de Capra é uma obra que toca os extremos da filiação do homem perante o sistema – de um lado da barricada o despojamento altruísta de Jefferson Smith o escuteiro que se põe em sentido na presença do Governador, recolhe miúdos abandonados e gatos vadios e cita Lincoln de cor, e no outro lado, o poder esmagador dos Senadores corrompidos, a ganância dos tubarões de Washington que mexem os cordelinhos na sombra em defesa do establishment, das influências e do proveito pessoal. O Yankee Doodle encontra o Star Spangled Banquet. A colisão será fatal!

Embora muito mais politico do que A Grande Esperança – atente-se à sequência propagandista após a chegada de Smith ao Capitólio onde as palavras são suprimidas e em seu lugar se elevam os símbolos da Nação, da bandeira à águia, da Declaração de Independência ao lugar do imenso Lincoln perpetuado no mármore - as semelhanças formais entre A Grande Esperança e Peço a Palavra são evidentes. É interessante perceber a proveniência comum de Abe Lincoln e Jeff Smith: o meio rural como pasto de valores, impoluto de vícios e corrupção, a formação de caracteres e personalidades alicerçada nos tradicionais valores de honra, justeza e solidariedade. É na América rural, por oposição à grande cidade alienada e escravizada pelo Poder que a sustenta, que as páginas da Constituição ganham forma e chegam mais alto - “that government of the people, by the people, for the people...”. E se por um lado Smith é um pacóvio obstinado, um purista que transporta consigo e contra o Poder instituído, o poder da Razão que faz valer disparando em todas as direcções, o jovem Abraham Lincoln é uma personagem vertical, um corpo erguido pela câmara de Ford a um sentido de elevação esquálida, sem artifícios nem alinhamentos rebuscados. Une-os a mesma inocência, o mesmo acreditar, a mesma convicção na Democracia ou algo semelhante a um estado de pureza ideológica; os mesmos modos de gente do campo, os passos longos, firmes de Lincoln com o tronco inclinado para a frente desafiando a gravidade, ou os malabarismos desconfortáveis de Smith com o chapéu na presença de Susan magistralmente captados à socapa e ao pormenor pela câmara de Capra. Lincoln como defensor dos mais fracos, Smith como defensor das causas perdidas – “ I guess this is just another lost cause, Mr. Paine. All you people don't know about lost causes. Mr. Paine does. He said once they were the only causes worth fighting for.”

O jovem Lincoln interpõe-se à justiça de linchamento que a horda anseia por executar. A recusa de Smith em servir de capacho e lamber as botas do Senador que admira como um pai, é a mais cruel das ironias de um destino que foi escolhido para votar leis e que agora quer fazer aprovar uma. Sobre ambos paira o espectro da morte. A morte física de Lincoln num tempo que ainda está por chegar, (veja-se a profética subida da colina na sequência final do filme, quando caminha de rosto destemido em direcção à tempestade que ameaça o horizonte carregado), e a morte política de Smith pela recusa em mascarar a palavra dada, a palavra pedida.

Ford, o republicano e Capra, o democrata, evocam a memória e a natureza do homem num registo apartidário da sétima arte. Independentemente de todos as linhas condutoras em que se move, Peço a Palavra é na sua génese o clássico confronto do Bem contra o Mal elevado à dimensão política de uma Nação comprometida, mas desperta. A Grande Esperança é como um rendilhado solto de sucessivos momentos a tocar a perfeição. De subtilezas e lampejos de enorme beleza, de uma contemplação inesgotável. Não me arriscaria a dizer em que estilo ou género se enquadra. O biográfico e o ficcional são por demais evidentes, o humor e a tragédia estão sempre presentes, o drama e as grandes sequências de tribunal conferem-lhe uma marca de água única. Perceba-se uma coisa: para mim o cinema é sobre contar histórias. Câmara, fotografia e direcção artística são outro assunto. Hitchcock utilizava as câmara para manobrar a adrenalina do espectador, Kubrick era um mestre de lentes, Eisenstein revolucionou a montagem, Orson Welles fazia tudo isso de olhos fechados, saía-lhe como respirava – era um génio. Mas, A Grande Esperança e Peço a Palavra, foram duas das melhores histórias que já me foram contadas.


Sim, Nancy Hanks,
Dar-te-emos notícias
Do teu Abe
A quem tu tanto amaste.
Perguntaste primeiro,
“Onde está o meu filho?”
Ele vive no coração
De todos nós.
in, Uma Resposta a Nancy Hanks, de Julius Silberger.

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