02/09/08

Os Tigres, por Nabo Leão

Em 1808 a corte portuguesa fugiu para o Brasil. Foi a primeira vez que um soberano do Velho Continente se deslocou em carne e osso aos seus territórios ultramarinos. D. João VI, o soberano português, até havia de gostar dos trópicos e, rezam as crónicas, já nem queria sair do Rio de Janeiro depois de lá morar durante uns anos. Compreende-se.

A fuga da corte portuguesa foi uma vergonha nacional, até porque as tropas invasoras napoleónicas que chegaram a Lisboa em 1808, comandadas por Junot, vinham num estado lastimoso e, com o apoio dos Ingleses, podíamos perfeitamente tê-las rechaçado. É espantoso como uma nação que se habituou a combater desde a sua fundação para manter a sua soberania tenha decidido fugir daquela maneira para o outro lado do Atlântico. Mas foi o que foi. A vergonha foi notória. Conta-se que a rainha D. Maria I, mãe de D. João, terá mesmo dito ao cocheiro para que não fosse tão depressa para que não se pensasse que fugiam dos franceses.

Medroso ou cobarde, o certo é que D. João VI foi dos poucos monarcas que conseguiu sobreviver à revolução francesa e a Napoleão. Não acabou decapitado, nem exilado nem preso como os seus semelhantes europeus e governou enquanto monarca do Império de Portugal do Brasil, do Algarve e das Áfricas até ao fim dos seus dias. Pouco antes de morrer no seu exílio em Santa Helena, Bonaparte escreveu mesmo nas suas Memórias, referindo-se a D. João: «Foi o único que me enganou». Ora toma!

A viagem da corte haveria de marcar a história do Brasil e de Portugal. Os Portugueses foram encontrar uma cidade com graves problemas de higiene. No seu livro 1808, Publicações D. Quixote, 2007, o investigador brasileiro Laurentino Gomes conta uma história impressionante a este respeito. E acrescenta uma explicação para o atraso no saneamento no Rio de Janeiro. Trata-se ao mesmo tempo de um testemunho incómodo sobre os níveis de degradação e de humilhação a que o racismo pode conduzir. E isto não se passou assim à tanto tempo... Ora leiam, reproduzo com a devida vénia da página 135 do livro, cuja leitura aconselho vivamente:

«A urina e as fezes dos moradores (do Rio) recolhidas durante a nite eram transportadas de manhã para serem despejadas no mar por escravos que carregavam grandes tonéis de esgoto às costas. Durante o percurso, parte do conteúdo desses tonéis, repleto de amónia e ureia, caía sobre a pele e, com o passar do tempo, deixava listras branca nas suas costas negras. Por isso, estes escravos eram conhecidos como tigres. (...) O sociólogo Gilberto Freyre diz que a facilidade de dispor de «tigres» e o seu baixo custo retardou a criação de redes de saneamento nas cidades e no litoral brasileiro».

6 comentários:

Anónimo disse...

muito boa esta dos Tigres. Por cá também temos alguns malhados e trazem merda às costas que não é brincadeira.

ass: digo eu de que

Anónimo disse...

eu acho é que é bom texto. é um problema meu desde canininho: vejo um cabrão dum bom texto e chamo-lhe logo cabrão e bom texto.

Anónimo disse...

Esperava mais do Tapor numa recensão do best seller da época ! A história dos tigres é já repescada do livro "Império à Deriva A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821" de de Patrick Wilcken. Gostaria de saber se o livro é sério ou é mais um acto de "zombaria" dos Brasileiros em relação a Portugal ???
JNAS

Anónimo disse...

JNAS: não me parece que o livro seja mais um a gozar com a malta. está bem documentado, o autor tem, aliás, uma preocupação permanente de fundamentar com testemunhos e fontes da época as suas afirmações. De resto, para o leitor comum, até pode parecer excessivo esse zelo do Laurentino Gomes. O homem dá números para trás e para a frente e indica as suas fontes. Achei-o muito credível e o apoio da fundação lusa-brasileira para a comemoração dos não sei quantos anos da descoberta do brasil assim o atesta. O livro do inglês que citas já me passou pelas mãos mas só isso pelo que não me posso pronunciar. Mas é assumidamente uma obra mais romanceada o que me pareceu óbvio ao desfolhar simplesmente umas quantas páginas. Longe, portanto, do zelo deste 1808 do L.Gomes.
Manda sempre e desculpa a resposta atrasada mas tenho estado fora e aqui no tapor somos cada vez menos a manter o tasco aberto...
Nabo

alexandre disse...

"Os Portugueses foram encontrar uma cidade com graves problemas de higiene."

-Apesar de terem saído de uma nos mesmos moldes, muito semelhante, veja só:

*Ambas as citações estão na página
83 do Livro.
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"Todo mundo é obrigado a levar as imundices para o rio e há uma quantidade negras que fazem o trabalho, mas essa ordem não é exatamente cumprida pelo povo"

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"Atirava-se pela janela, sem aviso algum e a qualquer hora do dia ou da noite, a água suja, as lavaduras da cozinha, as urinas, as fezes acumuladas de toda a família"

alexandre disse...

isso aí em cima acontecia em Lisboa por volta daquela época.Coloque os dois lados da moeda e não apenas um, Ok ?