27/10/08

Dos bifes e da terra deles, por John

Depois de uma experiência livreira falhada, deu-se a circunstância de ter acumulado recentemente à minha vida uma experiência emigrante falhada. Uma perspectiva optimista da existência dir-nos-ia que não há experiências falhadas, só há experiências, mas fosse o que fosse, cá continuo a lutar pela vida, pois é assim a vida. Novamente no “meu” país.

Sou um internacionalista, um apaixonado da globalização, mas este episódio de exílio tornou pelo menos mais aguda a questão de “casa”, do sítio onde nascemos, crescemos e estamos até mais confortáveis. Entre os nossos, na nossa terra. Por muito que isso por outro lado nos desagrade, porque também há sempre algo desagradável no que é “nosso” e estar lá fora tanto pode ajudar a relativizar como a acentuar os defeitos do “nosso”país. Seja como for, por muito que sejamos do mundo, é muito difícil escaparmos à noção e à emoção da pátria. Somos sempre de um cantinho do mundo e há sempre um lugar de regresso. Até o taporco é um lugar a que se regressa sempre com prazer, quando mais a um país que dizem que é nosso...

Estive cerca de três meses em Inglaterra, em Bristol, no sudoeste da ilha, entre Gales e a Cornualha. Este post não serve para tratar de questões pessoais ou de regresso – sou pai de dois filhos muito pequenos e alguns factores de longo prazo pesaram, digamos apenas assim - mas sobretudo exprimir algumas impressões do que foi esta experiência recente. Acima de tudo, foi muito enriquecedora. No mínimo, conheci um pouco o Reino Unido. Pelo menos algumas paisagens e edifícios. E alguns usos e costumes. E, curiosamente, regressei também com a viva sensação de que Portugal é melhor, em termos gerais, do que vulgarmente acha quem de cá nunca saiu. E que até pode ter um futuro mais radioso do que países como o próprio Reino Unido, se não descarrilar. Como é evidente, no entanto, Portugal ainda é pior num sem número de pequenas coisas. E além disso, a Inglaterra não é assim tão má como alguns descrevem, há muito quem chegue, se instale, se adapte e seja feliz. No meu caso, não foi assim, mas o meu caso não é necessariamente exemplar. Seja como for, gostei e aconselho muita coisa que por lá vi.

O que segue, porque sou como o Júdice, um “optimista preocupado”, são assim mais notas soltas acerca do que mais me impressionou positivamente, que acho que é um espírito adequado à conjuntura:

Uma das mais gritantes coisas inglesas melhores é a preservação e a valorização do património, da história, da paisagem, do ambiente. E até das tradições e da arte e da cultura em geral, da sua produção e da sua fruição. A questão do património, sobretudo o património arquitectónico e histórico, é como que um símbolo dessa superior qualidade britânica. Realmente, não se vêem, como cá, palácios ou castelos a cair aos pedaços. Os ingleses nutrem o seu passado de uma forma mais exigente e não há edifício minimamente notório que não esteja primorosamente cuidado. O mesmo para parques, matas, reservas ou outros patrimónios naturais. Deve ter a ver com questões de orgulho e vaidade, o que nos falta e o que lhes sobeja, mas tudo se pode também resumir em suma a uma questão geral de maior civilidade e elegância.

Outra coisa gritantemente superior é a imprensa. O jornalismo que por lá se faz. O nosso, até o pimba (que é o grosso da nossa imprensa, mesmo disfarçada de coisa “séria”) comparado com o de lá, é uma caricatura mal desenhada. Além do facto de que se lê muito mais, é-se menos analfabeto, lê-se muito melhor. E o feliz leitor britânico tem o privilégio de poder escolher entre muitas excelentes opções. Só no capítulo dos jornais diários a diferença de qualidade é abismal: Do Times ao Guardian, do Financial Times ao Independent ou ao Daily Telegraph, há um leque muito razoável de jornais, de diversas sensibilidades políticas - uns mais conservadores, outros mais liberais, uns mais à esquerda outros mais à direita, outros mais centrais, nesse aspecto também não enganam ninguém e nem comprometem a qualidade do jornalismo produzido na mais antiga democracia da Europa. Neste segmento, por exemplo, Portugal tem apenas um título acima de média, que é o Público. Para quem gosta de andar bem informado, um forte ponto a favor dos bifes.

Uma das razões da anterior superioridade britânica é também ela própria uma coisa melhor. Tem a ver com o nível de exigência do cidadão comum. Achar que o inglês é o cromo grunho operário dos pubs e dos futebóis à morteirada, é como achar que o português é o cromo grunho operário da tasca e dos futebóis à morteirada. Também é verdade, mas nem de longe nem de perto toda a verdade (aliás, o segundo exagero está muito mais próximo da verdade do que o primeiro). Mas o que interessa é que os ingleses regra muito geral são muito mais exigentes enquanto cidadãos, enquanto consumidores - de cultura, cuidados de saúde ou autocarros. Por isso estão os espaços públicos e patrimoniais tão bem preservados e por isso são melhores os jornais. Também por isso, já agora, se diz com verdade que os portugueses trabalham “muito melhor lá fora” (além de “muito mais”, mas isso é outra conversa). Fazem-no porque, aqui, nem eles próprios se sentem motivados a serem “melhores”, nas suas comunidades, nos seus empregos, nas suas famílias, etc.. Aqui previligia-se sermos “mais”, ou “menos”, ou sobretudo “mais ou menos”. Enquanto que “lá fora”, encontramos não só elevados critérios de qualidade, como melhores graus de exigência. Adaptamo-nos e gostamos, e vemos que é bom. Mas regressamos e achamos outra vez que é só para os outros. É o sistema. É alguma coisa na água da torneira. Não sei, mas enfim, é mais uma questão de mentalidade, genérica e que será afinal transversal a todo o resto que possa enumerar, mas esta cultura de exigência foi daquelas coisas que mais me marcaram positivamente por lá, digamos assim.

Um ambiente laboral muito mais favorável ao trabalhador. Outra coisa que pude confirmar positivamente. A começar nos níveis salariais médios e na cobertura social ao desemprego ou à maternidade. Gente muito mais ciosa dos seus direitos, sobretudo, mas também gestões muito mais profissionais e sérias na generalidade das pequenas, médias, grandes ou gigantescas empresas. O patronato português médio é não só muito mais conservador e básico, como muito mais mesquinho e explorador. Ah, e não há cunhas, nem na função pública nem na função privada. Ou pelo menos é um fenómeno muito raro e altamente condenável. E não generalizado e aceite como altamente como cá. Outro sinal evidente de menos parolos no sistema.

Os políticos. Uma distância abismal. Até com a televisão sem som. Só o aspecto é largamente superior. O debate político e a qualidade dos políticos britânicos mete os nossos num bolsito. Por aqui, pelo que vejo, os partidos continuam a reeleger Batistas. Não é que não haja caciques deste calibre, nas Ilhas, que os deve haver, mas regra geral é um nível bem acima da nossa média. Também, lá está, é outro nível de escrutínio. Mas não há dúvida que o Brown mete o Sócrates num bolsito e que o parlamento local é muito mais respeitado e melhor frequentado do que o nosso. E que há menos parolos.

Falam inglês. É certo que muitos portugueses falam mais ou menos, lá está, inglês, mas os ingleses têm a enorme vantagem de todos eles falarem fluentemente a sua língua. Esta é da minha veia internacionalista e de esperantista utópico, mas também tem a ver com o facto dos ingleses estarem mais em contacto com o mundo, são menos aldeões. Falam fluentemente a língua franca da globalização e moram num dos principais motores culturais, científicos ou económicos dessa globalização. Estão como tal numa situação muito mais privilegiada em relação ao mundo e à contemporaneidade, não no balcão, mas no palco. Estando na Inglaterra, digamos assim, nós portugueses temos muito melhor consciência da nossa insignificante periferia.

Em grande medida graças a esta universalidade da língua e do papel central no mundo, a internet inglesa é também muito melhor. Um excelente indicador são os sites dos municípios e entidades públicas afins, que são muito melhores e frequentes. O nosso país ainda está quase na idade do transístor no que respeita, não tanto aos consumidores de internet (somos já mais de quatro milhões a navegar em Portugal), mas aos produtores de internet, à disseminação do comércio eletrónico, do acesso a serviços, presença empresarial, portais temáticos e gerais, excelentes sites de jornais, televisões ou revistas, etc. . A oferta Web britânica, pública ou privada, é outro bom exemplo a seguir. Esta história do Magalhães, já agora, é um bom sinal e é nesse sentido que Portugal deve caminhar, muito bem, no sentido da informatização maciça das novas gerações, já que isto da informática e da internet agora só acaba quando o mundo acabar. Não é moda nem é questão optativa. Quer dizer, haverá sempre quem prefira regressar à natureza pré-digital, mas até nesse aspecto os ingleses estão a ser mais e melhores. Sobretudo, o que é irónico, a regressar à nossa natureza pré-digital, a julgar pelo muito metro quadrado a retalho que têm comprado no abandonado interior português.

Fala-se muito mais de religião, de religiões, direitos, liberdades e garantias, laicismo, ateísmo, criacionismo, secularismo, etc. No país de Richard Dawkins, Hume e Russel, tudo isto está presente na praça pública inglesa com muito mais vivacidade e interesse. O forte crescimento da comunidade islâmica a par com uma cada vez mais vocal comunidade secular, descrente e humanista, são fenómenos entre outros que geram um debate público intenso, e que recentemente chegou até aos autocarros de Londres, sob a forma de publicidade a promover a descrença em Deus… Em Portugal, o catolicismo romano não se debate muito mas são, principalmente, assuntos que despertam pouco interesse ao nosso nobre povo à rasca com outras urgências, mas este é, sem dúvida, um forte ponto forte a favor para a Inglaterra. Discutem-se coisas interessantes. Em grande medida porque há em média menos parolos.

Quase toda a gente diz obrigado e boa tarde ao condutor do autocarro, à entrada e à saída. E não me refiro aos autocarros de carreira com motorista habitual. Refiro-me aos condutores dos buses urbanos. Pelo menos da cidade onde vivi. “Hello” à entrada e “thank you” à saída e sempre com um sorriso - por sinal, achei que se riam muito mais do que nós, em geral, mesmo na rua, sobretudo na rua, pelo menos em Bristol. Os motoristas agradecem e tenho a certeza que gostam do gesto. Mas é principalmente um hábito simpático. Que aqui é raro.

O futebol. Aliás, todos os desportos em geral, é gente que aprecia uma vasta gama de modalidades, mas sobretudo o futebol. Não sou de grandes empenhos teóricos ou militantes, nem sequer tenho clube, mas o futebol que se pratica e assiste aqui mete o nosso domingo desportivo no bolsito ao pé do bolsito onde estão os nossos políticos. É um primor. Até os jogos “do fundo da tabela”, como dizem os peritos. O puto Ronaldo em grande destaque e estima, ainda, estádios sempre cheios e animados, protagonistas mais civilizados e profissionais, golos fabulosos a rodos. Enfim, espectáculo com muito mais qualidade e, como dizem os peritos, “muito mais brilho”. Até aqui há menos parolos. O cricket, o rugby, o golf, o bilhar ou os cavalos são outras modalidades extremamente populares.

Não deitam piriscas para o chão e é muito raro escarrarem na via pública. Só quando estão bêbados, o que é muitas vezes. Mas seja como for, pelo menos na cidade onde estive, a limpeza das ruas funciona muito melhor e há cinzeiros públicos por todo o lado. Mas atesto que em todos os sítios a que fui (Londres, Brighton, Bath, Glastonbury, Cambridge, etc.) não há o hábito generalizado e aceite da beata ou da cuspidela indiscriminada a qualquer hora do dia. Ruas muto mais limpas e um grande ponto pró-bifes.

Muito mais bicicletas nas cidades. Sem dúvida nenhuma incontornável, esta referência positiva. E entretanto reparo que a prosa já vai longa. Os prós são mais e talvez para a próxima escreva sobre os contras, que até nem acho serem o mais importante, mas genericamente acho que para já chega. E os interessados podem exprimir mais prós e contras nos coments, se lhes apetecer.

7 comentários:

Anónimo disse...

Bem vindo a casa, john. Reflexão interessante fundada na experiência pp. CSó não acho que o magalhães seja uma forma séria de combater a info-exclusão. Não faço distinção, na forma, entre aquilo e o valentim a dar electrodomèsticos na feira. Já vimos isto...
Jack

Anónimo disse...

Disso tudo que dizes há uma coisa muito simples em que tenho inveja dos bifes que é quando dizes que «é muito raro escarrarem na via pública». Nós, pelo contrário, vivemos na Escarrolândia.

Anónimo disse...

Obrigado ó Jack! Ainda vim a tempo de regarregar baterias com este sol fantástico. Por lá é tudo muito frio e cinzento...
Ó anónimo, então não há mais nada para invejar? Nem os jornais?

Anónimo disse...

O que é preciso é Sol e gajas boas. E isso eu não vejo na posta. Na terra da névoa não me apanhas. Por alguma razão os gajos vêm todos pró Algarve e pra Penela. Até podem escarrar à vontade.

Escarroçador

Anónimo disse...

O que é preciso é Sol e gajas boas. E isso eu não vejo na posta. Na terra da névoa não me apanhas. Por alguma razão os gajos vêm todos pró Algarve e pra Penela. Até podem escarrar à vontade.

Escarroçador

Anónimo disse...

Ó John se só andaste em Bristol, isso também não é bem o exemplo da Inglaterra em geral. Bristol é uma espécie de Sintra lá do sitio, clean e politicamente correcta. Não me parece que na maioria de Londres, Birmingham ou Manchester se pudesse retirar essa imagem de limpeza e cuidado. Ou não?

Porco&Mundo

Anónimo disse...

Pois, não sei, dos sítios onde estive, incluindo Londres (é claro que se pode sempre invocar que não andei pelos ingotes lá do sítio, onde haverá uma taxa superior de escarração), é assim. Refiro-me mais ao ambiente médio geral, digamos assim. Mas Bristol é realmente uma cidade acima da média", digamos assim. Como Cambridge, onde também estive, não são provavelmente os melhores exemplos. Ou aliás, são os melhores exemplos.