03/10/08

O Condestável, ou o Atelier do Suspiro, por Zé Critério

Aqui há meia dúzia de anos, abriu na Ereira, próximo do Cartaxo, com estrada quase directa a partir da saída de Aveiras da Auto-Estrada do Norte, o Restaurante Condestável. O Vice e o Grão, mastigantes sempre atentos a estas capelinhas, ouviram dizer bem e abancaram. Gostaram e voltaram. Dessas três ou quatro expedições punitivas, ficaram na memória um excelente buffet livre de entradas diversas e um queijinho de cabra com ervas frito, assim como uns Pimentos Vermelhos recheados com cogumelos, que eram qualquer coisa de outro mundo.

Aqui há cerca de 2 anos, voltei ao Condestável com a minha Maria e a miúda, sempre com a memória, como elas aliás, no magnífico buffet. Surprise, o tasco tinha mudado de um lado da rua para o outro. Tocou-se à porta e veio o Luís Suspiro, himself, abrir a coisa e instalar o pessoal na mesa. A sala avantajada é como dizia o Automotora: cheia de armaduras, brasões, floretes e espadachins com um santo condestável tamanho família lá pelo meio, tudo a armar ao fervor patriótico, muito kitsch e sobretudo, muito monárquico, mas presumo que fosse mesmo essa a intenção.

Amesendação impecável. Serviço de copos e talheres mais finos que os do rei e vai de lançar o olhar à mesa do esperado buffet. Não havia. E não havia mesa de queijos. Havia sim uma ementa tipo gigantone com pratos de nome elaborado, embora de base regional. A Maria pugnava por uma retirada estratégica. Contudo a miúda já tinha afiambrado numas Empadinhas quentes e eu - bem eu - estava simplesmente curioso.

A ementa gigantone tinha um preço único e gigantesco de cerca de 9 contos pessoa por um menú degustação do tasco. Interroguei pela ementa de pratos únicos. O Luís Suspiro lançou-me um olhar de surpresa e explicou lá do alto que só havia o menu degustação. O preço era um pormenor. Era assim que funcionava no grande Arzak do País Basco e era assim que funcionava no El Buli da Catalunha e era assim que ele queria, uma vez que ali era o seu atelier, a sua galeria de arte, onde ele mostrava ao público a sua arte, isto é, a sua reinvenção da cozinha tradicional portuguesa, a elaboração moderna dos nossos sabores da infância. Atenção que não estou a inventar. O Suspiro disse mesmo isto, e com muito mais floreados e rapapés.

Do seu discurso transpareceu alguma afectação e snobismo, mas a coisa não era arrogante e tinha a sua lógica. O homem lá explicou alguns pratos e eu mais que curioso, engoli a isca e o anzol e fiquei. Apesar dos 9 contitos pessoa, mas enfim um dia não são dias, é prá desgraça e morra quem se negue. A Maria deitou-me um daqueles olhares de caixão à cova, mas prontos enterrado por um, enterrado por mil.

E seguiu-se o menu. Oito ou Nove pratos de tamanho gigante (os pratos em si, não a comida) de design do próprio Suspiro, que além de artista da cozinha é artista do vidro e da cerâmica. O primeiro prato foi um creme branco preso, quase em pirâmide, que se perdia no meio da imensidão do vidro roda 26. Olhei prá aquilo e pareceu-me que era para comer à garfada. A miúda copiou. O Suspiro não me viu a mim, viu a miúda e corrigiu-a dizendo que era Sopa de qualquer coisa. Larguei o garfo à sorrelfa e fiz um ar de admoestação à miúda, que furibunda se recusou a continuar na Sopa. Azar. Comi eu as três, mas agora à colherada. Sabia muito bem, mas não se sabia o que era.

No segundo prato – se bem me lembro - veio uma pequena peça triangular, prá aí do tamanho de uma chamuça normal, com umas ervas por cima em equilíbrio instável. O prato, de vidro trabalhado azul feérico do tamanho de um tabuleiro de cantina, era estonteante no seu néon-renascentismo. O que se situava no meio dele era uma alhada de raia. Reinventada pelo Suspiro. A miúda não gostou, a Maria amuou e eu comi as três. Enquanto limpava as três doses, que me souberam às mil maravilhas, a Maria suspirou um “isto é nouvelle cuisine”. O Suspiro que vinha a passar nas costas da Maria, ouviu. Meu Deus. O homem estacou como que fulminado:
– Ó minha Senhora, “Nouvelle Cuisine”? Pelo amor de deus, isto é genuína e pura cozinha portuguesa! A “Nouvelle cuisine” não existe! Não me ofenda, eu não faço “nouvelle cuisine”, eu faço cozinha portuguesa, eu sou um patriota, um artista luso, eu jamais fugiria aos sabores da minha terra…
E eu que queria era comer descansado, lá larguei a raia e fui em socorro da Maria:
- Pois, o que ela queria dizer era que, como isto não tem qualquer espinha ou coisa de tirar, pensou isso, coiso, e tal, não é essa uma das características da Nouvelle…
A Maria que já estava a mariná-la desde o início, não deu parte de fraca e espetou o dedo onde doía no dito cujo:
- Cozinha portuguesa é que não me parece, cozinha portuguesa é a feijoada, os pézinhos, o bacalhau e o cozido, aqui nem consigo saber o que é!
Meu deus, o que a cachopa foi dizer. O homem ficou roxo, virou azul, ainda tentou dizer alguma coisa, mas pediu licença e foi prá cozinha esbaforido.

Quando julgávamos que nos tínhamos livrado do Criativo, eis que o Artista regressa do além com livros e livros, calhamaços enciclopédicos tamanho gigante, a cores e ao vivo.

Passámos todo o resto da refeição a ouvir a explicação de cada um dos pratos. Como se comia. A que é que nos devia saber. Os Aromas. A Reinvenção. E tudo, mas tudo, com remissões e fotografias dos partos do Arzak, do Buli, do Ras Com Fabes, e eu sei lá mais o quê. Por fim eu assentia e a Maria também, completamente vencidos. Eu pelo cansaço, elas pela fome, já que no meio daquilo tudo, era eu que acabava a comer os três pratos. Recordo-me de um Pudim Abade de Priscos decomposto e separado em todos os seus componentes que era qualquer coisa de magistral. No mais, nem soube o que era, que já nem ouvia o Suspiro.

Comi que nem um Abade, e paguei que nem um cão. Mas o que mais me doeu, foi que a seguir tive que ir gastar mais dinheiro nuns bifes da Portugália para elas as duas. Ficou caro o Suspiro. Mas eu voltava. O homem tem razão. Há que reinventar e reelaborar a cozinha tradicional portuguesa e o homem de facto é um artista. Desculpem lá o tamanho, mas não é fácil resumir a arte.

2 comentários:

Anónimo disse...

Este artista do condestável é bom. Muito bom, há que dizê-lo com toda a frontalidade. Mas nunca me hei-de esquecer de uma vez que lá fui e no fim o gajo até veio à porta despedir-se e dizer adeus com a mãozinha a acenar. Comi muito bem, é certo, mas fiquei para sempre com a sensação de que aquela carinha sorridente e a mãozinha cândida a acenar eram a gozar co patego que tinha acabado de deixar ali uma nota preta que dava para três meses de ucranianas de beira de estrada...
O Craniano

Anónimo disse...

bem, eu cada vez que vejo/leio uma sinopse de refeição que meta grão/vice, penso logo em preços de putas.
não sei porquê, é defeito meu.