14/11/08

Terminação do Anjo, por Leitor Intermitente

O último livro do Abrunheiro é como a Coca Cola do Pessoa. Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Entrei mal na obra. Talvez porque não tenha uma relação fácil com a poesia em geral – gosto apenas de alguma pouca em particular, mais por falta de disponibilidade que por aversão, é daquelas coisas que estou a guardar para a velhice porque pressinto que são preciosas demais para se desperdiçarem em idades sem tempo para as verdadeiras preciosidades. Mas seja como for a poesia nunca foi o meu território literário de eleição. E o último livro do Daniel é, digo eu, um poema disfarçado de romance.

Comprei um exemplar no lançamento, abri-o expectante na primeira noite e confesso que comecei por não gostar. Custou-me a entrar naquele emaranhado de palavras exóticas. Demasiado palavroso, demasiado estiloso, demasiado objecto indeterminado, demasiado ovni. Resultado, o mecanismo da leitura padrão emperrou. Pelo meio (intro)meteu-se uma Grã Bretanha no meu caminho. Mas de regresso, já este mês, retomei a obra. Voltei ao início, disposto a não me deixar abater pelas primeiras impressões. Em boa hora.

Há livros difíceis. “Terminação do Anjo” não é um livro fácil. Isto é dito por alguém que adora palavras. Adoro o que elas significam, mas também me apaixona a forma como elas significam. Durante anos, antes de o matar, tive um blog chamado palavrar, um termo que descobri posteriormente foi também utilizado por Pessoa num dos seus versos. Palavrar celebra para mim o potencial plástico da palavra, aliás, celebra o potencial total das palavras, mas traz também para relevo o prazer da forma. Que é importante, quanto a mim, no mesmo sentido em que os poetas de antigamente e alguns de agora obedecem a regras métricas e a rimas estéticas: por uma questão de estilo. Porque “soam”, além de significarem. A junção das duas coisas numa frase, num texto, num verbo, num livro, resulta numa experiência ao mesmo tempo didática e estética. Pode ser boa, pode ser má, depende; nos dois sentidos ou apenas num. Mas pelo menos numa obra literária espera-se que as palavras sejam belas, além de sábias. As duas coisas juntas em maior intensidade, profundidade, mestria e criatividade, resultam por norma numa obra de génio.

Que se perceba, enfim, que gosto de palavras, das escritas. Em pessoa sou lacónico mas a escrever sou palavroso. E gosto de Mia Couto e de todos os novos autores de língua portuguesa espalhados pelo mundo a inovar com a língua, a mudá-la, a transfigurá-la, a não a deixar morrer ou a estagnar, a criar novas formas de e para a linguagem. Mas também gosto da ideia de equilíbrio e ao princípio o livro do Daniel foi-me desagradável, porque me pareceu de certa forma desafinado, com um sobre-peso de virtuosismo estético, na profusão vocabular. “Virtuosismo gongórico”, foi uma das expressões que me vieram à cabeça e que vim a saber mais tarde serem cruéis e injustas.

Apesar de ser algo que nunca escapa ao olhar de qualquer leitor experiente, as figuras de estilo normalmente escondem fragilidades, mas no caso deste livro percebi que é pelo contrário. Que é talvez mais uma excepção que confirma a regra, mostrando que também há casos em que palavrar demasiado é uma forma de encriptar informação preciosa.

Retomando, entretanto ultrapassei a Inglaterra e regressei ao livro, que se encontrava na mesinha de cabeceira, exactamente como se encontrava há três meses atrás, com a marca ainda esquecida para aí na página 40. Como se tivesse esperado por mim, paciente. Ou teimoso. Dei-lhe uma nova oportunidade e voltei ao início. Ao início da viagem de Camilo Ardenas, num autocarro expresso em direcção a Coimbra numa noite de Inverno. Curiosamente, à segunda deixou de ser tão difícil. E acabei por devorá-lo em duas noites, como quem devora um objecto estranho mas irresistível, tipo sopa agri-doce. Venci a repulsa inicial e consegui finalmente ver para além da beleza das palavras, ou melhor, consegui ver a beleza das palavras por dentro. Como quem diz, “desta vez percebi!”. Vi para além da embriaguez palavrosa e percebi uma obra grande, abundante em novidade, emoção e ensinamento. Recomecei e pouco depois estava a lê-lo na sua justa medida de poema em prosa. Que é isso que o Daniel Abrunheiro faz quanto a mim melhor: poesia.

Como o próprio título indica, esta é a história de um anjo terminal, perdão, terminador. Um anjo fatal e trágico como os anjos dos filmes de Wim Wenders, desses que andam ao nosso lado pelas ruas das nossas cidades familiares. Não me lembro dela ser alguma vez nomeada no livro, mas essa cidade por ondeia vagueia o anjo negro é Coimbra. E como sempre Daniel não faz cerimónias com a cidade, uma cidade que não é “enxuta” e onde pululam “poetas municipais”. Putas e vinho verde, diz a Coimbra do Daniel. Trata-se também de uma história (porque há uma história) em torno de livros e da paixão dos livros. Da paixão de os escrever, como se verá em última instância, mas inicialmente de os ler. E da paixão de os ter, que também é focada.

Mas “Terminação do Anjo”, não obstante ser também uma história, é um livro de poesia, tem a volúpia descontrolada da poesia, e a poesia, como se sabe, não se explica, lê-se e experimenta-se. Há uma narrativa, mas por todas as linhas deste ensaio sobre a memória há lirismo. E é assim, acho eu, que se lê melhor este último/primeiro/maisoumenos romance (« talvez») do Daniel Abrunheiro, mais um escritor a acrescentar definitivamente ao rol dos inovadores da língua portuguesa. E que merece e deve ser lido. Quem não acredita que vá ao blog dele.

O que acho mesmo é que sobretudo os amantes da veia poética do Daniel, se forem persistentes, vão gostar muito deste livro sobre a arte de criar histórias, de criar (e tirar) vidas. Sobre mais uma série de temas, anatomias, almas e geografias interessantes. Mas se à primeira não entrar, salvo seja, poderá não ser má táctica fazer como eu fiz, ler primeiro uma parte, viajar e voltar uns tempos depois para ler o resto. É um livro a que vale a pena regressar.

4 comentários:

Anónimo disse...

isto é o que faz pôr os professores a ler livros. em vez de mazera passarem os meninos todos a anjos.

Anónimo disse...

e a coca-cola estranha/entranha é do pessoa, não é do 0'neill.

Anónimo disse...

Obrigado, o pepsi, tens razão.

Anónimo disse...

Consegue me dizer como é que era Camilo Ardenas psicologicamente sff
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