06/12/09

Cossery: o Poder da Ironia, Por Bartleby

Acabei de ler, do escritor egípcio Albert Cossery, A Violência e o Escárnio. A escrita de Cossery é seca. Não tem aquele poder poético que é fundamental para que o leitor retire prazer da leitura. Muitos escritores vivem disso, neste livro, pelo contrário, o que se verifica é um claro predomínio da denotação. O Japonês Murakami, por exemplo, é o contrário da escrita de Cossery: Murakami é um criador de universos. De mundos próprios, oníricos, místicos, misteriosos e o argumento interessa pouco. Cossery é quase o oposto: a linguagem é usada para exprimir um referente e é o mais seca e objectiva possível, mas o argumento é tudo. Claro que isto também proporciona a criação de um universo muito próprio, mas o mundo literário de Cossery é um deserto, um deserto gelado (apesar de tudo se passar em climas quentes) nos antípodas das quase-mitologias de Murakami.

O argumento de A Violência e o Escárnio é espantoso e, de certo modo, o livro é quase um romance de tese. Algures, num país árabe e quente, há um governador que oprime a população. E há os revolucionários habituais que contestam as suas políticas e lutam contra o seu governo, arriscando a vida e a liberdade. Mas Heykal tem outra ideia do que deve ser a luta contra o regime do tirano: para ele o maior erro consiste em levar os tiranos a sério. É isso que todos eles querem, ser levados a sério. E, portanto, Heykal e os seus resolvem combater o tirano fazendo da ironia a sua grande arma. É assim que espalham panfletos pela cidade e cartas nos jornais que glorificam o governador. Glorificam-no a tal ponto que se tornam exagerados e ridículos. O Povo entra na hilariedade geral e perde o respeito ao tirano que assim está prestes a ser derrubado.

Mas os revolucionários sérios não gostam desta forma de luta e não querem ser confundidos com os protagonistas desta mentira. Ficam tão furiosos com Heykal como o próprio governador. No limite, Cossery equipara estes revolucionários ao tirano: a única diferença entre eles é que um ocupa o poder e os outros são a oposição. Mas na prática são uma e a mesma versão da seriedade mortífera que empesta a vida. E é assim que acabamos por perceber que o verdadeiro revolucionário é o mestre da mentira, da ironia e do humor: Heykal. No fundo, para os revolucionários sérios, a ironia e o sentido de humor são muito mais perigosos que o ditador sangrento. E, portanto, é preferível salvar a reputação do governador a deixá-lo cair, vítima da ironia dos sátiros de Heykal. Cossery é uma lição! Apesar da secura...

12 comentários:

Anónimo disse...

secura, porque não cria um universo novo? não retrata ambientes? não retrata a realidade onde o romance se insere? explica, sff

feve

Anónimo disse...

secura, porque não cria um universo novo?
Ó feve eu não disse nada disso. Disse o contrário, que a secura «também proporciona a criação de um universo muito próprio, mas o mundo literário de Cossery é um deserto, um deserto gelado (apesar de tudo se passar em climas quentes) nos antípodas das quase-mitologias de Murakami».
Bartleby

Anónimo disse...

eu só queria perceber o que queres dizer com escrita seca e secura. com a oposição que fazes à criação de universos do murakami, pareceu-me que querias dizer que a dita secura assentava na falta de criação/descrição do universo/ambiente onde se passa a acção. é isso?

ou queres antes dizer com a tal objectividade/objectivo que não há adjectivação no cossery. é por aqui?

feve

Anónimo disse...

é que a certa altura tu dizes: "a linguagem é usada para exprimir um referente e é o mais seca e objectiva possível",

ora isto é contrário á ideia dos livros e da escrita do cossery que eu tenho. esse libvro em concreto já o li há muito tempo e por aí nem teimo, porque pode acontecer isso de facto,

mas de muito outros que li, o cossery é quase e só adjectivação, há livros quase inteiros apenas assentes na adjectivação e o cossery é criticado como escritor precisamente por isso: excessiva adjectivação. muitas das vezes não sabemos se a personagem é alta, magra, barbada ou forte mas sabemos logo à partida que é feia, porca e má, que o cossery em adjectivação não brinca em serviço.

feve

Anónimo disse...

Ok, feve, vou tentar explicar-me melhor com o que quero dizer com «escrita seca» em Cossery, ou para ser mais rigoroso, neste livro de Cossery que é o primeiro que li dele (mas vou ler mais...).
Começando pelo princípio: a linguagem humana tem muitas e variadas funções, aspecto que foi exaustivamente abordado pelos linguistas, pelos filósofos da linguagem, pelos semiólogos e outras espécies. Uma das funções mais primárias e unanimamente apontadas por todos os teóricos é, precisamente, a função referencial (R. Jakobson). A linguagem serve, em primeiro lugar, para se referir a um objecto, tem uma intencionalidade semântica. Por exemplo, quando me dizem que «o cão é preto», esta função é directamente concretizada. Este é o nível de linguagem que identifico no post com a denotação, mais próprio da linguagem objectiva e dos códigos epistemológicos. Mas há muita forma de dizer que o cão é preto. Murakami não o diria assim, acho; Cossery sim (pelo menos este cossery deste livro). É a esta secura que me refiro.

E note-se que isto não é necessariamente contraditório com a questão da adjectivação que aqui apontas. Se eu disser que «o cão é amistoso» em vez de preto, há secura na mesma. cossery é seco, também neste ponto. Murakami passaria 5 páginas a descrever algo de diferente que cossery reduziria à expressão «o cão é amistoso». Para o egípcio esse não é o cerne da sua literatura, para o jap talvez sim... Quando tu dizes que Cossery é atacado precisamente pelo excesso de adjectivação, pois não sei, não li nada sobre ele, ou muito pouco. Mas isso bate certíssimo com o que aqui digo e com a secura de escrita que aqui vi. Ou como tu dizes «muitas das vezes não sabemos se a personagem é alta, magra, barbada ou forte mas sabemos logo à partida que é feia, porca e má.» Pois é, a adjectivação contribui para essa secura.

É esta a secura do estilo de cossery a que me refiro e por isso é que coloquei o jap nos antípodas do egípcio.
bartleby

Anónimo disse...

Outra pista interessante que o livro me sugere é a sua relação com o tópico da ironia e da mentira: por isso assinei Bartleby, tás a ver, Melville é da família... Mas podia ainda citar o Eco que tem um tratado sobre a mentira e os mentirosos da literatura ou o grande Oscar Wilde com a sua constante e mortífera ironia...
Bartleby

Anónimo disse...

OK, já percebi a tua secura. e devfacto nesse prisma o cossery pode ser seco. as cinco páginas para descrever o cão não existem em cossery.

num dos livros mais admiráveis de que agora não recordo o título ele descreve um policia numa única frase plena de adjectivação e temos a personagem perfeitamente definida.

fever

Anónimo disse...

algo nao bate certo: se a adjectivação aponta para um universo de significados conotativos e se um diz que o cossery é assim, e o outro diz que ele é seco porque não adjectiva, antes é directo e objectivo, portanto denotativo, existe aqui uma contradição. Seco, objectivo, denotativo, ou prolixo, conotativo, rico em significados? O número de páginas não é relevante; o que importa é a riqueza das suas palavras (e sendo seco não parece que exista - é antes certeiro, objectivo). A outra perspectiva vai em sentido contrário

exegeta

Anónimo disse...

o Exegeta levanta uma questão pertinente ó postador. como é? não se responde.

e repito o Cossery é um campeão da adjectivação.

fever

Anónimo disse...

em 2007 já se tinha feito aqui um outro post sobre o cossery. é ver:

http://tapornumporco.blogspot.com/2007/01/no-se-pode-enforcar-um-homem-tronco-por.html

Anónimo disse...

A questão do exegeta é muito pertinente. eu já esclareci em que sentido considero a escrita do Cossery seca. Neste livro a linguagem é denotativa, objectiva, não me pareceu conotativa. Foi nesse sentido que falei em secura.
O fever é que veio dps dizer que, de um modo geral a escrita dele é adjectiva e conotativa e, embora eu ache que um estilopode recorrer à adjectivação e ser seco (como explico) essa afirmação não é mimnha mas do fever.

Anónimo disse...

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