20/04/07

O Juiz Holden, A Personagem Mais Terrífica Da História Da Literatura, por Gregor Samsa

Foi agora editado em Portugal o novo livro de Cormac McCarthy de título A Estrada. Ainda não li, mas estou a estranhar a recepção americana que presenteia A Estrada com o Prémio Pulitzer.

É que Cormac McCarthy não é querido pelos americanos. É um autor maldito, que se enterrou no interior americano e se fecha a sete chaves no seu refúgio. Tal como J.D. Sailinger e Thomas Pynchon, não dá entrevistas a ninguém e não recebe ninguém. Não vai à tv e nem “aparece”. Fez questão desde há dezenas de anos de desaparecer. E a sua obra não ajuda. É que não é fácil ler McCarthy. Logo nas primeiras páginas começamos a engolir em seco e começa a boca a ficar encortiçada.

Assim que entramos no Meridiano de Sangue (Blood Meridian no original) tropeçamos numa árvore no meio do deserto com bebés pendurados nos ramos. Muitos. Pendurados pelos pés e de cabeças cortadas. Ou mãos. Já li a coisa há muito tempo e já me falha a memória. Depois piora. Aparece o Juiz Holden. Um líder nato, intelectual, pistoleiro e facínora. Ao longo do livro vamos tropeçando em horrores e crimes indescritíveis que nos são apresentados com uma mestria de escrita inigualável. Holden não está lá e tanto quanto sabemos não esteve. Holden lidera um bando legal e com estrela ao peito. É cativante e é-nos simpático. Não é ele. Não pode ser ele. Só a pouco e pouco é que nossa simpatia por um herói nato começa a ser corroída pela dúvida. McCarthy nunca nos diz directamente, mas acabamos por dar no Holden. Só ele. Porque aquelas monstruosidades, só poderiam vir de um cabeça inteligente e requintada. Intelectual mesmo, como já disse. Holden não é Juiz, mas quer agarrar (to hold) o que lhe escapa, porque quer o mundo e o mundo só existe quando ele o cataloga, recolhe e agarra. Holden é um cientista, um intelectual e um visionário. Ao mesmo tempo é um assassino e o mais cruel dos bandalhos. É difícil avançar mais na trama e na personagem, sem vos estragar o prazer da leitura e da descoberta, mas como diz Harold Bloom só vos digo que estamos perante a mais terrível personagem da história da literatura.

Apesar de ser um escritor de renome e com alguma critica favorável, Cormac é afastado das Universidades que o não estudam e é mal visto pelos americanos. A razão do afastamento é simples, os livros do Cormac versam o Oeste mítico e não respeitam o mito. São duros, cruéis, sanguinários. Dirão alguns, está bem, e daí?, já muita gente ficcionou sobre a crueldade do Oeste. O que há de novo? O que há de novo, é que sendo ficção, o Cormac não ficciona. Investiga seriamente os incidentes e os acontecimentos históricos e crava-lhes personagens que se ajustam ao que efectivamente se passou. O Holden não é um sanguinário qualquer. É uma personagem construída por inteiro, complexa e com requintes de malvadez do escritor para o leitor. Sendo ficção há ali muito de ensaio histórico. E é isso que dói nos americanos. Ler McCarthy implica descer a um Oeste de que dificilmente se gosta. E pior ainda, sentir a cada passo da leitura de que não pode ter deixado de ser assim.

Os livros de Cormac mais do que pura ficção enquadram-se naquilo que normalmente se designa por Non Fiction Fiction (os livros de Bruce Chatwin são daqui, por exemplo), um meio termo entre a pura ficção e o livro de reportagem ou de crónica factual.

Voltando ao “Meridiano De Sangue”, Cormac conta-nos a história do Jovem (nunca saberemos o nome dele, será sempre o Jovem, e a letra grande é minha) e o seu ingresso no bando do Capitão Coral, caçadores de escalpes de índios pagos à peça pelas autoridades locais e estatais de ambos os lados do Rio Grande. Se julgam que é mais um livro de peninha sobre os índios, arrepiem caminho, os índios de Cormac encaixam-se na perfeição. Quem começou não se sabe, nem o Cormac vai por ali, até porque a sua escrita é despida de moralização, mas sabemos ao ler aquilo que qualquer de nós poderia estar de qualquer dos lados da barricada e da chacina: de quem caça os índios, de quem caça os colonos, de quem caça os caçadores. Por norma, nas regiões de fronteira, as fronteiras entre o bem e o mal estão por natureza diluídas. Como nos livros de Cormac e de facto não é fácil descobrir ou aplaudir ali a epopeia. Não há preto e branco, nem a luta do bem contra o mal, até porque na maioria do livro não nos conseguimos agarrar a nada e já não sabemos se amaldiçoamos o bem ou se abençoamos o mal. Os americanos obviamente não se revêm, não gostam e varrem o Cormac para debaixo do tapete. Tirem-no de lá e leiam-no, que vale a pena.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nenhum livro se compara a esse. Ninguém se compara ao juiz. Ele viverá para sempre