24/04/07

Dos Contos do Deserto - III, por Pedro O`Tolo


I`ve Got You Under My Skin. Sem aviso prévio. A Voz cria em mim, no mesmo instante, um alheamento momentâneo ao texto que estou a ler. Escapam-me as vozes de Dean Moriarty e do Sal Paradise. Paro de ler.

Suspendo a febril marginalidade do oceano capturado.

O livro repousa sobre a mesa, voltado para baixo na página em que me detive; o mar impõe-se ao meu olhar. Uma brisa ocasional esvoaça as bandeiras enterradas na areia clara. O azul das águas serpenteia em várias tonalidades, cada vez mais escurecidas, desdobra-se até um ponto longínquo da costa, contrasta com o horizonte desta tarde e ascende à limpidez do ar que respiro. O princípio é turquesa muito claro, quase transparente, junto à areia da praia, depois, mais carregado progressivamente, o verde das montanhas ao fundo detém a progressão do azul, e mais nada, se me fosse possível continuar para além do que a visão alcança. Estes últimos dias de Abril também são assim – como argumentos dos melhores filmes série B com final imprevisível. A luz que possuiu o afastamento de tudo o resto quanto deixei para trás, ameaça extinguir-se e deixa-me exausto só de a sentir entranhar-se nos pulmões. Adio o regresso a casa com gestos que se escapam nas leituras beatificadas destas horas perceptivas. Derradeiras são elas todas, todos os dias.

Aproximou-se um velho do Teneré que foi guia do Rommel durante a ofensiva dos Aliados. Sei disto tudo sobre ele porque os seus passos avançavam como os de um ladrão esquecido. Trazia um guarda-chuva negro muito gasto que abria para se cobrir do sol. Sentou-se ao meu lado, pediu-me um cigarro, inclinou-se para mim e começou a falar do vento, essa força para além do entendimento dos homens mortais que transforma as dunas e a face da terra. Que sem o vento, naquela noite em que Lawrence se retirou para a solidão das areias, nunca teria nascido o mito. Foi o vento que lhe moldou a vontade e lhe mostrou que a fornalha do Nefru podia ser atravessada. Falava do vento com o profundo respeito de um adversário que muitas vezes se tinha atravessado nos seus caminhos. A pele gretada das mãos, as pregas brilhantes e secas junto aos olhos, ofereci-lhe outro cigarro e, para mo agradecer, disse-me que a sombra daquela tamareira ficara amaldiçoada desde o dia em que o irmão mais novo prendera nela uma corda e se enforcara. De nada me valiam os mapas, informou-me, se não soubesse encontrar uma sombra no deserto. Estava um final de tarde muito belo, mas a mim não me enganava, pois quem o quisesse encarar de frente veria que era um mau pagador de promessas. A noite tímida e o dia persistente misturavam o laranja escuro com o cinzento violáceo e assim nos deixámos ficar, naquele intermédio, em silêncio a maior parte do tempo. O velho partiu.

Retomo a leitura. Apodera-se de mim o espírito de Dean Moriarty, apetece-me beber uma garrafa de bourbon Old Grandlad com muito gelo, deixar-me diluir nesta tarde insuportavelmente autêntica e inútil, como um pianista negro com a mão direita engessada. Porém, antes de tudo o que antecipa a insensatez de receber o mundo em bruto, irei dar um último mergulho nas ondas. Amaciar a fé que ainda me resta, contemplar antes que se esgote, a frágil cadência deste Verão antecipado após o anterior que, ainda hoje, vela pelo meu regresso.

Afinal, o Lawrence da Arábia também andou muitos anos sem perceber alguma vez o quanto era apenas um homem mortal.

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