01/04/07

O Jorge, por O J

Jorge ia a andar na rua e ficou de repente um livro em branco, vazio de ideias. Levantou-se com muito custo e esboçou um sorriso imbecil, vazio de propósito e vontade. Levou a mão à cabeça e procurou sacudir a terra misturada com sangue que lhe cobria o cabelo de uma pasta nojenta cor de merda hemorroidal. Ainda tentou dizer foda-se mas as palavras tinham-se-lhe varrido do pensamento e constatou que já não sabia dizer foda-se. Olhando para a mão cheia de massa castanha avermelhada, aliás, percebeu que o próprio pensamento se lhe varrera do pensamento. Percebeu então que não percebia coisa alguma. E da boca saiu-lhe um som animal parecido com gaaah. Não se perturbou porque também ficara vazio de estados de espírito. Olhou para o chão e viu os cacos de cerâmica do vaso misturados com terra e restos de flores, crisântemos amarelos, espalhados em volta no passeio. Um líquido quente começava a correr-lhe pela cara abaixo. Olhou em volta e na rua não passava ninguém. Passou o braço pela testa para limpar o sangue que lhe caía para os olhos, pegou na pasta caída que instintivamente presumiu sua e retomou o andamento, desta feita um pouco trôpego. Sem olhar para trás, chegou ao fundo da rua, contornou o passeio para a direita e deu de caras com o mar, para lá da avenida e do longo areal. Como era hora de pouco movimento, não foi atropelado quando atravessou a estrada para chegar à praia. Simplesmente seguiu em frente em passada catatónica. O calor intenso entretanto solidificara a pasta de sangue e terra na cabeça e o líquido deixara de lhe correr pelo corpo abaixo. Desceu as escadas e prosseguiu em frente pela areia branca. Nada lhe ocorria senão a visão do grande e irresistível azul em frente. Caminhava sem como nem porquê, oco. Tropeçou num buraco, caiu desamparado para a frente e levantou-se imperturbável, retomando o caminho. Não parou quando chegou às ondas que rebentavam pequenas e suaves na praia mas quando o oceano lhe chegou aos calcanhares começou a ouvir um violoncelo na cabeça. Uma música celestial preencheu-lhe o vazio interior. Jorge não sabia, continuava a não saber coisa alguma, mas tratava-se de uma suite de Bach interpretada por Pablo Casals. Rasgou de novo os lábios num sorriso estúpido e continuou a andar mar adentro até perder o pé e desaparecer. A água salgada encheu-lhe os pulmões e Jorge morreu. A música não. Bach tocava ainda quando Jorge renasceu, vácuo como antes. Agora estava escuro, um negrume húmido mas confortável. Sem ideias, Jorge foi recrescendo e esperando por algo no breu primordial. Finalmente fez-se luz. Então, Pablo Casals parou de tocar violoncelo. E Jorge sentiu um prazer imenso, um calor de orgasmo eléctrico que lhe percorreu o corpo verde. A cabeça de Jorge era agora um pequeno botão, verde, um cálice com pequenas pétalas amarelas no interior, sem vontade nem propósito. Aos poucos foi medrando. As raízes estenderam-se fortes pela terra no vaso e o caule alongou-se, nutrido pelo sol que durante metade do dia irradiava na varanda do quinto andar onde Jorge ressuscitou flor. O botão enfim abriu e revelou-se em bonitas pétalas amarelas de crisântemo silvestre. Jorge-flor foi feliz naquela varanda até ao dia em que o gato derrubou o vaso, que se veio a rebentar lá em baixo, desabando justamente na cabeça de alguém chamado Horácio. Enquanto Horácio seguiu o seu caminho para o mar, o crisântemo amarelo acabou por ser varrido nessa noite para o contentor do lixo mais próximo. Sem terra nem sol, acabou por morrer no aterro sanitário, esmagado entre detritos. Enquanto murchava e desfalecia, começou a ouvir suites de violoncelos.

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