Em novecentos anos de História, Portugal apresenta um registo de três décadas de liberdade democrática, o que perfaz, se não me engano nas contas, menos de 3 por cento da tal história. O que significa que somos, enquanto país, uma criança em termos de maturidade democrática. O papel dos EUA no mundo é outro tema igualmente fascinante, mas não é disso que gostaria de tratar neste dia pós-25. Para responder aquelas questões iniciais, no entanto, gostaria de me centrar na experiência histórica democrática dos EUA, que, ao contrário da nossa criança, já tem barbas. Apesar de assentar num esquema presidencialista, não deixa de ser um caso de estudo interessante para nós. Não vou explicar como funciona a democracia norte-americana, eram precisos muitos livros e eu não domino o assunto assim tanto, mas apenas suscitar reflexões no sentido de começarmos a olhar para fora com mais humildade e tolerância, aprendendo com a experiência dos outros.
Os pilares da democracia norte-americana são europeus, reflectem sobretudo os ideais da Revolução Francesa e de pensadores britânicos como John Locke ou Thomas Hobbes (pai do conceito de “contrato social”) ou franceses como Rousseau e Voltaire. A Democracia norte-americana, fundada num contexto de libertação colonial, por um lado, e de protestantismo, por outro, reflecte, aprofunda e coloca em prática pela primeira vez na história da humanidade um sistema político verdadeiramente revolucionário, assente no primado da liberdade individual e da igualdade de direitos. A Declaração de Independência, a Constituição e as suas dez adendas (os “ten amendments” que constituem a “Bill of Rights”) são expressões máximas dessa revolução na forma de fazer política e exercer o poder, que continuam actuais e em vigor.
A Europa, incluindo a França, pátria-mãe dos ideais, andou entretida ainda uns séculos com totalitarismos monárquicos, imperiais ou ideológicos, ou com chacinas como duas guerras que se tornaram mundiais, enquanto do outro lado do oceano, se desenvolvia uma sociedade pujante, fervilhante, mais livre mas profundamente contraditória e até desigual, à imagem dos indivíduos que compõem as sociedades, e que constitui ainda hoje uma espécie de íman carismático para milhões que em todo o mundo aspiram à liberdade ou à prosperidade.
Entretanto aconteceu mais História e a Europa recuperou no Séc. XX o tempo perdido, aprofundado igualmente o(s) seu(s) modelos de democracias liberais. Por ser um sistema político aberto, o sistema democrático liberal que se tem espalhado pelo mundo (um dos fenómenos dos muitos que concorrem para a dinâmica de “globalização”), está em constante aperfeiçoamento e em permanente debate. Não é dogmático nem é tendencialmente estático e conservador, como são as ditaduras ou as monarquias. E essa maleabilidade permite, por exemplo, acomodar as necessidades e os anseios das minorias. Ou mesmo as aspirações e as necessidades de cada indivíduo. E permite corrigir disfunções de forma relativamente harmoniosa – nos Estados Unidos, por exemplo, a disfunção da escravatura foi corrigida muito mais rapidamente do que nos outros países: O país nasceu em 1774 e em 1863, nem cem anos depois, acabou com a prática; um registo, convenhamos, muito mais simpático que o português, por exemplo. Ao passo que num sistema ditatorial a disfunção é violentamente reprimida, as minorias têm que se subjugar às supostas maiorias e a individualidade é oprimida e anulada em nome de um putativo bem comum.
Acontece que não só a “disfunção” é inerente ao ser humano, sucede na própria natureza, como a diversidade individual não se compadece com esquemas totalitários, que fracassam todos precisamente porque não acomodam essa diversidade. O facto é que todos nós, individualmente, regemos as nossas vidas mediante as nossas muito particulares agendas e interesses, que podem ou não coincidir com a agenda dos outros, que podem ou não ser grupais, que podem ou não ser generosas ou que podem até coincidir hoje e não coincidir amanhã. Tudo depende, já que a impermanência é uma lei básica da existência - realidade que os ideais totalitários não compreendem nem aceitam. Isto para dizer também que efectivamente as coisas mudam e que as democracias liberais incorporam melhor a mudança e a liberdade individual na prossecução do tal bem comum e do ideal de felicidade.
O caso dos EUA, da sua democracia e da sociedade que gerou, é particularmente interessante porque também é particularmente visível e mediático, é um país escancarado, aberto, "espectacular" (no sentido de espalhafatoso), super-abundante (a produção científica e artística falam por si) e objecto de todas e mais algumas atenções, ódios e paixões. E se olharmos para o grande quadro, para lá dos problemas tipicamente norte-americanos ou de outros que são comuns aos nossos simplesmente noutra escala, o que vemos é efectivamente uma democracia viva e muito mais madura do que a nossa (portuguesa, já que há outros países europeus com experiências democráticas muito mais interessantes e maduras do que a nossa).
Não obstante disfunções como a que permitiu a eleição de Bush Jr. (a bronca dos votos na Flórida), entretanto discutidas e corrigidas, o que se percebe quando se penetra no verdadeiro debate político por detrás das campanhas eleitorais, para além do tal “circo” que percebe quem apenas acompanha os telejornais, é um debate intenso e amplamente participado, em torno de questões substantivas e não das guerras de alecrim e manjerona em que nos envolvemos por aqui. Discutem-se pessoas, sim, mas acima de tudo discutem-se ideias e projectos.
Além disso a política não se esgota nos partidos e em Washington. Inclui, já agora, a prática do lóbing (grupos de pressão juntos das instâncias políticas), de forma regulada e transparente: Minorias que vão desde os industriais do calçado a gays e lésbicas, fazem lóbing de forma aberta e normal na defesa dos seus interesses, tentando convencer os decisores da bondade dos seus argumentos. Ao passo que em Portugal o lóbing é pecado e a pressão faz-se por baixo da mesa, de forma obscura e propiciadora da corrupção e do tráfico de influências. O mesmo vale para o financiamento dos partidos: entre a transparência norte-americana e o nevoeiro cerrado português vai um oceano maior que o Atlântico.
A alternância bi-partidária em Portugal, por seu turno, é uma caricatura patética do bi-partidarismo norte-americano. Entre uma e outra práticas políticas vai a diferença de 250 anos de experiência democrática de um povo. Comparada com a vibrante e amplamente participada democracia norte-americana, a nossa é um catraio imberbe e imbecil com borbulhas na cara – e para quem acha que não, aconselho mais uma vez a acompanhar com mais atenção as presentes eleições primárias nos EUA, para além das manchetes e dos flashes televisivos.
Os dois partidos do nosso arco governativo são eles próprios caricaturas patéticas de partidos políticos a sério. Ainda são uma espécie de projectos de partido, à escala histórica das coisas. Para já porque não são partidos feitos para servir os cidadãos e o país, estão formatados para servir em primeiro lugar a militância e a clientela e só depois, com o que sobrar, a comunidade. São agremiações de interesses particulares e corporativos e essa realidade é bem patente nas estruturas locais e distritais dos partidos ou nas autarquias, invariavelmente muito mal frequentadas. À democracia nacional falta ainda, como existe noutras democracias mais avançadas, um eficaz sistema de “checks and balances” que permita controlar e limitar os abusos e as prepotências do(s) poder(es) – na esfera autárquica, por exemplo, um passo significativo seria uma maior dignificação das Assembleias Municipais, conferindo-lhe efectivos poderes de fiscalização e controle da actuação governativa do Executivo, mais à semelhança do que acontece entre o Governo e o Parlamento.
E há duas formas de olhar para isto: Ou os partidos são assim porque evoluíram nesse sentido, ou são assim porque ainda são novos e ainda não evoluíram muito. Mas a realidade que a generalidade dos portugueses percepciona é a de que esses partidos se tornaram em pouco mais do que agências de empregos e negócios, sob o pretexto da governação. Resultado: governa-se mal. Cada vez pior, porque os melhores também se afastam cada vez mais destes ninhos de intrigas mesquinhas, favores e carreirismo.
Outro dos sintomas da dor de crescimento das jovens democracias como a portuguesa é o chamado populismo. Trata-se de uma praga a que temos sido relativamente imunes, mas que tem vindo a trilhar o seu caminho de forma tentacular, no PS com Sócrates, certamente, mas sobretudo no PSD e sobretudo desde Durão Barroso. O processo de sucessão na liderança do PSD tem sido exemplar nesse sentido, de revelar os muitos rostos dessa tendência primarista. De facto, só um partido imaturo numa democracia imatura poderia sequer equacionar ter como presidente o Alberto João Jardim, um hino ao grunhismo caciquista de veia totalitária, sub-espécie pitoresca de Avelino das Ilhas. Aliás, qualquer partido que tenha uma figura destas como referência não merece ser levado a sério, mas adiante.
É óbvio que esta não é uma característica exclusivamente nacional, o caso recente de Berlusconi (uma espécie de Jardim à italiana mas muito mais sofisticado e com mundo) é paradigmático. Ou Chavez na Venezuela, ou Putin na Rússia, ou o Iznogud do Irão. Também são expoentes dessa forma básica de fazer política – sobre o ressurgimento de focos de populismo na América Latina, aconselho esta leitura, a propósito de um livro que ainda não foi cá publicado (penso eu). O próprio Bush, nos EUA da mais antiga democracia do mundo, apesar de toda a artilharia pesada ideológica e teórica dos neo-conservadores, foi eleito em grande medida com mecanismos tipicamente populistas, nomeadamente o de oferecer respostas fáceis para questões difíceis. E como é óbvio, espalhou-se ao comprido. Não admira, portanto, que os três actuais candidatos que se perfilam para a presidência constituam um saudável sintoma do regresso da política norte-americana à “normalidade”.
Estes e outros problemas da democracia nacional levam, não só ao afastamento dos mais novos (não necessariamente pela “política”, ou pela intervenção cívica, mas sobretudo pela actual oferta partidária), mas também de cada vez mais eleitorado urbano e educado, classe média para cima, que também se reve cada vez menos nestas formas rasteiras de fazer política e que não tem alternativa senão a abstenção ou o voto em branco - as últimas eleições autárquicas intercalares em Lisboa registaram cerca de 60% de abstenção! Ora, alguém acredita que isto é só “desinteresse pela política” e que só atinge “os jovens”?
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