Entretanto, os amanhãs desafinaram, o muro e o Pacto caíram de podre e o país dos sovietes para lá caminha. E muitos de nós acordámos também entretanto. Mas desse sonho restaram, na memória de quem o viveu, experiências belas e exaltantes. A memória que tenho delas é uma. Sobretudo porque a experiência que tive com elas foi do domínio da beleza e não da ideologia.
Elas são artistas. Artistas extraordinárias, herdeiras e transmissoras de uma tradição artística sublime. Elas são búlgaras e são um grupo coral. Cantam folclore do seu país e tudo começou para o mundo assim: Algures nos anos 80, a 4AD, editora fundamental dessa década, descobriu este tesouro vocal e, apesar do Muro e do Pacto, lançou um álbum precioso chamado Le Mystere des Voix Bulgaires. Foi Peter Murphy, vocalista dos Bauhaus (uma das bandas icónicas da 4AD), já agora, o responsável pela internacionalização do fenómeno Vozes Búlgaras e pelo lançamento desse álbum e de um segundo que se seguiria. Foi ele que entregou a Ivo, fundador da etiqueta britânica, uma cassete com registos recolhidos pelo etnomusicólogo francês Marcel Cellier, ao longo de 15 anos em zonas rurais da Bulgária.
Depois foi o que se sabe. Alguns anos depois do lançamento do disco, elas passaram por Portugal. Foi numa Festa do Avante e continuavam a existir Muro e Pacto. Nunca fui militante de cartãozinho, mas era simpatizante e nessa Festa estava em trabalho, era um entre as centenas de voluntários que durante uma semana ali acampavam para montar, apoiar e desmontar o arraial comunista.
Quando as conheci estava designado naquele dia para dar apoio a um cameraman que fazia o registo vídeo dos acontecimentos. E nessa qualidade andava com o precioso cartão de acesso aos "backs stages" de todos os espectáculos. E foi assim que as conheci. Mais ou menos. Éramos um pequeno grupo de quatro ou cinco amigos, há algum tempo fãs incondicionais daquela estranha e arrebatadora forma de cantar. Íamos aos autógrafos, também, mas sobretudo para conhecer, falar, ver de perto aquelas criaturas de outro mundo.
O encontro não correu exactamente como esperávamos. Desde logo porque ainda havia o Muro e, mesmo ali naquela grande festa da fraternidade marxista-leninista, não foi fácil chegar à fala. Os contactos eram limitadíssimos e só na companhia de uma omnipresente mulher búlgara mais velha, presumivelmente do PC búlgaro, ou coisa parecida. Uma das condições, se bem me lembro, era não falar de política. Condição inútil porque ninguém estava ali para tal coisa. Mas acabou por ser uma mera troca de apresentações e simpatias breves, e apenas com uma porta-voz do grupo, a única que sabia arranhar estrangeiro.
“Votre music es’t merveilleux”, “mérci beaucoup”, “pas de quois” e etc. Pardais ao cesto, galhardetes, cortesias, coisas do género. Um pouco constrangedor, devo dizer.
Mas poucos minutos depois deste frustrante contacto, começou a magia da beleza. O espectáculo foi dentro de uma tenda parecida com as dos circos, com péssimas condições acústicas e de conforto. Mas fez-se realmente magia e este tornou-se um dos grandes espectáculos da minha vida. E ali abracei definitivamente o mistério. E ainda hoje sou crente.
Isto tudo para dizer que as moças cantadeiras da Bulgária estarão em breve de regresso a Portugal (provavelmente uma outra geração de moças cantadeiras). Já cá estiveram mais vezes depois daquele Avante, presumo, mas desta vez estão mais perto de casa. Passam pelo Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Voz, no dia 6 de Junho. Bilhetes a 25 euros. É caro mas garanto que vale bem a pena todos os cêntimos. Eu já comprei.
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