
Leio as páginas de um
livro de um viajante que visita Chichen Itza, a famosa ruína maia, no México, e
o paradoxo é evidente. O escritor despreza as hordas ignaras de turistas
anafados como se fossem pragas de gafanhotos predadores. Fala do lixo, do linguarejar
barulhento, dos guias de camisa branca que vendem os seus clichés por 10
dólares e das multidões de aldeões que enxameiam as ruínas com as suas
bancas de artesanato tétrico, feito de caveiras, serpentes, jaguares e
guerreiros decapitados. Conclui que Chichen Itza, como todos os lugares
turísticos do mundo, seria muito melhor sem a praga de turistas arrebanhados em
agências low cost. E, no entanto, a
contradição é evidente: este escritor é, também ele, um turista. Porventura o
mais nocivo de todos porque o livro que escreveu possui o tremendo poder de
ampliar a sua mensagem e de lhe multiplicar a potência, atraindo, desse modo,
muitos mais turistas que o simples passa-palavra da maioria. Ele reclama, à
partida, um estatuto de observador etéreo que não tem, o do viajante aureolado
que paira sobre as multidões de gordos. Mas está de má fé. Para todos os efeitos,
naquele momento, ele é só mais turista, um entre muitos, que contribui na
exacta medida de todos os outros para aumentar a pegada ecológica que vai
estragando Chichen Itza, a baía de Guanabara, Veneza, Benidorm, Albufeira, o mundo... De
nada lhe vale – a não ser enquanto mecanismo de sublimação – tentar convencer-se
de que é o viajante-querubim sem corpo, a voz sem língua nem saliva do escritor
imaculado. Errado – ele pesa os mesmos 100 kilos de todos os outros. É um
turista, um vil turista!
É por isso que todos os textos que escarnecem o turismo de
massas estão feridos de um snobismo
implícito e inevitável que é ainda pior quando não tem consciência de si. No
preciso momento em que escrevo uma palavra que seja a denunciar os horrores do
turismo, o viajante transforma-se num possidónio e é essa a armadilha em que
caem todos os escritores – grandes ou pequenos – de viagens.
Talvez fosse mais honesto se o viajante que não quer ser
turista reconhecesse o óbvio: que sem o malfadado turismo de massas os destinos
de sonho jamais passariam de locais virtuais. Graças ao turismo de massas somos
colocados nas ilhas Phi Phi, na Tailândia, com mais umas centenas de
indesejáveis. Lamentamos estes magotes que nos conspurcam o sonho. Mas sem
eles, pura e simplesmente, não poderíamos lá ir e Maya Beach continuaria a não
passar de um paraíso inacessível de que apenas usufruiríamos enquanto espectadores
espojados num sofá a telever o filme A Praia e a invejar o Brad Pitt. Estar nos
sítios com todos esses milhares de anafados é a única forma do real não nos
escapar completamente como areia por entre os dedos. Devíamos estar gratos e
não zangados com as multidões que fazem bichas intermináveis no Louvre e no Guggenheim
e com as algas castanhas que conspurcam as águas azul cobalto dos resorts
caribenhos. Afinal, somos todos turistas e, no mundo real, só existem duas formas
de o evitarmos:
- uma, autêntica e
eficaz, é não sairmos de casa. Mas isso significa a redução do nosso mundo à
forma de famélicas imagens que poisam fugazmente nos écrans do computador e da
televisão ou nas páginas mentirosas de um livro ilustrado. A outra, a falsa, é
estar de má fé. Consiste em auto convencermo-nos de que somos antes viajantes e,
como dizia Paul Bowles, «o viajante é o contrário do turista». O problema é que
cada um dos milhares de turistas que grelham ao sol de Albufeira está
convencido de que é ele esse ser excepcional, o viajante, e que todos os outros
são os malfadados turistas. Era bom que os nossos paraísos estivessem
desertos, à nossa espera, mas isso é cada vez mais difícil.