Há muitos anos, correndo as estantes empoeiradas da Biblioteca Municipal, tropecei no título de um livro que me encheu de curiosidade e me levou a lê-lo. Era uma obra-prima do realismo italiano, de um tal Carlo Levi e dizia que “Cristo Parou Em Eboli”. Como não consigo ler um livro sem ir a correr situar a coisa, descobri a cidade italiana de Eboli, a cerca de 100 km a sudeste de Nápoles, na Campânia e nas faldas dos Monti Picentini. Mas o livro não se passa aí. Aí parou Cristo e depois da abertura inicial, Eboli não mais aparece no livro.
O narrador, o próprio Carlo Levi, é desterrado por Mussolini para os confins da bota, para a pobreza miserável da Lucânia - junto ao tacão -, passa por Eboli e vai aterrar em Gagliano, aldeia próxima do rio Agri, para lá de Grassano e pertencente à província de Matera. Só não descobri no mapa Gagliano, que o autor deve ter inventado. O Agri, Grassano e Matera são reais e o exílio interno do Levi também.
Apesar de abrir caminho às correntes realistas italianas (vide badana), o livro é muito mais do que um manifesto realista. Num registo com muito de auto-biográfico, o médico, escritor e sobretudo pintor, Carlo Levi debruça-se sobre a vida dos que o acolhem nos confins do mundo romano. O retrato sendo cruel, não deixa de ter algo de mágico, com uma forte componente pícara e humorística. Mussolini em particular e o poder de Roma em geral, não saem bem na fotografia. Na década de 50, com a Itália pós 2ª Guerra a cavalgar ufana a riqueza da industrialização crescente, a ferida aberta por Carlo Levi não foi bem recebida, e o escritor foi ferozmente criticado por ter “dado para o estrangeiro uma imagem troglodita da Itália”.
É que pelo meio do livro, Levi mata Matera. A velha Matera, que a nova, lá continua capital de província e senhora dos seus 50 ou 60.000 habitantes. Mas na década de 30, Matera era um monte rochoso de cavernas e grutas infectas onde vivia a maioria dos seus habitantes. Levi fez um tal retrato daquilo, que a moderna Itália pós guerra entrou em estado de choque, quer pelo retrato, quer pela repercussão internacional do mesmo. O primeiro-ministro italiano da altura proclamou Matera como "la vergüenza de Italia", e o estado italiano obrigou a população a sair à força das cavernas, grutas e ruínas e fechou toda a velha cidade. A velha Matera passou então a servir de cenário a filmes apocalípticos (Pasolini filmou aí a miséria absoluta para alguns dos seus filmes) e de pano de fundo a um turismo de mau gosto. Ainda hoje, os italianos e a cidade em especial não gostam nada da alusão à coisa. Têm razão. Não saem bem na fotografia. No livro, o relato que se segue é a voz da irmã do narrador que vem de Turim visitar Levi:
“ - Não conhecia a região (…) Mas quando saí da estação, um edifício moderno e até mesmo luxuoso, e olhei em volta, foi em vão que procurei a cidade. Não existia cidade. Estava numa espécie de planalto deserto, cercado por colinas áridas e calcinadas, de terra cinzenta semeada de pedras. (…) Mas onde estava a cidade? Matera não se via.
(…) E fui finalmente à procura da cidade. Afastei-me mais um pouco da estação e cheguei a uma estrada ladeada de velhas casas dum dos lados e contornando do outro um precipício. Matera fica nesse precipício. Lá em cima não se vê quase nada por causa da excessiva inclinação da encosta que desce quase a pique. Ao debruçar-me, vi apenas terraços e carreiros que ocultavam completamente as casas. Em frente, ficava um monte árido e queimado, horrivelmente cinzento, sem marcas de ter sido cultivado, sem a animação de uma única árvore: apenas terra e pedras batidas pelo sol. Ao fundo corria uma pequena ribeira, a Gravina, um pouco de água suja por entre as pedras, fonte permanente de paludismo. O riacho e o monte tinham um ar sombrio e mau que confrangia o coração. (…) Era assim que nós na escola, imaginávamos o inferno de Dante.
Comecei a descer, em círculos, por um caminho de cabras. O estreitíssimo carreiro passava, serpenteando, por cima dos telhados das casas, se é que se lhes pode chamar assim. São grutas escavadas na argila endurecida do barranco; algumas têm uma fachada, à frente, e chegam mesmo a ser bonitas, com uns modestos ornatos tipo setecentista. Esta espécie de fachadas talhadas verticalmente na terra, tornam-se um pouco salientes em cima devido à inclinação da ravina e é nesse estreito espaço entre a fachada e o declive que passa o caminho que é, ao mesmo tempo, o tecto das habitações que ficam por baixo. Com o calor as portas estavam abertas.
Ao passar, ia olhando para o interior das grutas que não recebem ar nem luz por outra abertura. Algumas nem mesmo essa possuem: entra-se por cima, por uma escada. Dentro daqueles buracos negros, de paredes de terra, viam-se as camas, um miserável mobiliário, alguns farrapos estendidos. No chão estavam deitados os cães, as ovelhas, as cabras, os porcos. Em geral cada família só possui uma dessas grutas e têm de dormir todos juntos: homens, mulheres, crianças e animais. Vivem assim vinte mil pessoas. Crianças, então, é um número infinito. Com aquele calor, apareciam por todos os lados, no meio das moscas e da poeira, completamente nuas ou cobertas de andrajos.
(…) Vi crianças sentadas nos portais das casas, no meio da maior imundice, sob o sol ardente, com os olhos semifechados, as pálpebras vermelhas e inchadas; e as moscas pousavam-lhes nos olhos, enquanto elas continuavam imóveis, sem mesmo as sacudirem com mão. Sim, as moscas passeavam nos seus olhos e elas não as sentiam. Era o tracoma. (…) Encontrei outros garotos de rostos encarquilhados como velhos, esqueléticos e esfomeados, as cabeças cheias de crostas e piolhos. Mas a maior parte tinha umas barrigas enormes, inchadas, e as faces amarelas e apáticas da malária. As mulheres, quando me viam espreitar pelas portas, convidavam-me a entrar. E nas grutas sombrias e pestilentas encontrei garotos deitados no chão, sob uns cobertores esfarrapados a bater os dentes com febre. Outros mal conseguiam arrastar-se, reduzidos pela disenteria à pele e osso. E via alguns, com faces da cor da cera, que me pareceram sofrer de doença ainda mais grave que a malária, qualquer enfermidade tropical no género do Kala Azar, a febre negra. As mulheres, magras, com as crianças ainda de peito, subalimentadas e sujas, penduradas nos seios flácidos, saudavam-nos com uma gentileza triste e resignada. Sob aquele sol de cegar, parecia-me ter caído no meio de uma cidade devastada pela peste.”
A coisa prolonga-se, mas para pior. De fazer chorar as pedras da calçada, como manda a cartilha realista. Contudo, ali não era romance, mas realidade. Há pouco revisitei Matera, Gagliano e o velho e maltratado exemplar do Cristo Parou Em Eboli, da mesma biblioteca. Continua uma obra-prima que vale a pena saborear. Da Matera que se descobre no Google-Imagens continua-se a querer fugir. Levi tinha razão. Mas não digam isto a um italiano, que ainda hoje não gosta que lhe apontem a miséria do mezzogiorno.
O narrador, o próprio Carlo Levi, é desterrado por Mussolini para os confins da bota, para a pobreza miserável da Lucânia - junto ao tacão -, passa por Eboli e vai aterrar em Gagliano, aldeia próxima do rio Agri, para lá de Grassano e pertencente à província de Matera. Só não descobri no mapa Gagliano, que o autor deve ter inventado. O Agri, Grassano e Matera são reais e o exílio interno do Levi também.
Apesar de abrir caminho às correntes realistas italianas (vide badana), o livro é muito mais do que um manifesto realista. Num registo com muito de auto-biográfico, o médico, escritor e sobretudo pintor, Carlo Levi debruça-se sobre a vida dos que o acolhem nos confins do mundo romano. O retrato sendo cruel, não deixa de ter algo de mágico, com uma forte componente pícara e humorística. Mussolini em particular e o poder de Roma em geral, não saem bem na fotografia. Na década de 50, com a Itália pós 2ª Guerra a cavalgar ufana a riqueza da industrialização crescente, a ferida aberta por Carlo Levi não foi bem recebida, e o escritor foi ferozmente criticado por ter “dado para o estrangeiro uma imagem troglodita da Itália”.
É que pelo meio do livro, Levi mata Matera. A velha Matera, que a nova, lá continua capital de província e senhora dos seus 50 ou 60.000 habitantes. Mas na década de 30, Matera era um monte rochoso de cavernas e grutas infectas onde vivia a maioria dos seus habitantes. Levi fez um tal retrato daquilo, que a moderna Itália pós guerra entrou em estado de choque, quer pelo retrato, quer pela repercussão internacional do mesmo. O primeiro-ministro italiano da altura proclamou Matera como "la vergüenza de Italia", e o estado italiano obrigou a população a sair à força das cavernas, grutas e ruínas e fechou toda a velha cidade. A velha Matera passou então a servir de cenário a filmes apocalípticos (Pasolini filmou aí a miséria absoluta para alguns dos seus filmes) e de pano de fundo a um turismo de mau gosto. Ainda hoje, os italianos e a cidade em especial não gostam nada da alusão à coisa. Têm razão. Não saem bem na fotografia. No livro, o relato que se segue é a voz da irmã do narrador que vem de Turim visitar Levi:
“ - Não conhecia a região (…) Mas quando saí da estação, um edifício moderno e até mesmo luxuoso, e olhei em volta, foi em vão que procurei a cidade. Não existia cidade. Estava numa espécie de planalto deserto, cercado por colinas áridas e calcinadas, de terra cinzenta semeada de pedras. (…) Mas onde estava a cidade? Matera não se via.
(…) E fui finalmente à procura da cidade. Afastei-me mais um pouco da estação e cheguei a uma estrada ladeada de velhas casas dum dos lados e contornando do outro um precipício. Matera fica nesse precipício. Lá em cima não se vê quase nada por causa da excessiva inclinação da encosta que desce quase a pique. Ao debruçar-me, vi apenas terraços e carreiros que ocultavam completamente as casas. Em frente, ficava um monte árido e queimado, horrivelmente cinzento, sem marcas de ter sido cultivado, sem a animação de uma única árvore: apenas terra e pedras batidas pelo sol. Ao fundo corria uma pequena ribeira, a Gravina, um pouco de água suja por entre as pedras, fonte permanente de paludismo. O riacho e o monte tinham um ar sombrio e mau que confrangia o coração. (…) Era assim que nós na escola, imaginávamos o inferno de Dante.
Comecei a descer, em círculos, por um caminho de cabras. O estreitíssimo carreiro passava, serpenteando, por cima dos telhados das casas, se é que se lhes pode chamar assim. São grutas escavadas na argila endurecida do barranco; algumas têm uma fachada, à frente, e chegam mesmo a ser bonitas, com uns modestos ornatos tipo setecentista. Esta espécie de fachadas talhadas verticalmente na terra, tornam-se um pouco salientes em cima devido à inclinação da ravina e é nesse estreito espaço entre a fachada e o declive que passa o caminho que é, ao mesmo tempo, o tecto das habitações que ficam por baixo. Com o calor as portas estavam abertas.
Ao passar, ia olhando para o interior das grutas que não recebem ar nem luz por outra abertura. Algumas nem mesmo essa possuem: entra-se por cima, por uma escada. Dentro daqueles buracos negros, de paredes de terra, viam-se as camas, um miserável mobiliário, alguns farrapos estendidos. No chão estavam deitados os cães, as ovelhas, as cabras, os porcos. Em geral cada família só possui uma dessas grutas e têm de dormir todos juntos: homens, mulheres, crianças e animais. Vivem assim vinte mil pessoas. Crianças, então, é um número infinito. Com aquele calor, apareciam por todos os lados, no meio das moscas e da poeira, completamente nuas ou cobertas de andrajos.
(…) Vi crianças sentadas nos portais das casas, no meio da maior imundice, sob o sol ardente, com os olhos semifechados, as pálpebras vermelhas e inchadas; e as moscas pousavam-lhes nos olhos, enquanto elas continuavam imóveis, sem mesmo as sacudirem com mão. Sim, as moscas passeavam nos seus olhos e elas não as sentiam. Era o tracoma. (…) Encontrei outros garotos de rostos encarquilhados como velhos, esqueléticos e esfomeados, as cabeças cheias de crostas e piolhos. Mas a maior parte tinha umas barrigas enormes, inchadas, e as faces amarelas e apáticas da malária. As mulheres, quando me viam espreitar pelas portas, convidavam-me a entrar. E nas grutas sombrias e pestilentas encontrei garotos deitados no chão, sob uns cobertores esfarrapados a bater os dentes com febre. Outros mal conseguiam arrastar-se, reduzidos pela disenteria à pele e osso. E via alguns, com faces da cor da cera, que me pareceram sofrer de doença ainda mais grave que a malária, qualquer enfermidade tropical no género do Kala Azar, a febre negra. As mulheres, magras, com as crianças ainda de peito, subalimentadas e sujas, penduradas nos seios flácidos, saudavam-nos com uma gentileza triste e resignada. Sob aquele sol de cegar, parecia-me ter caído no meio de uma cidade devastada pela peste.”
A coisa prolonga-se, mas para pior. De fazer chorar as pedras da calçada, como manda a cartilha realista. Contudo, ali não era romance, mas realidade. Há pouco revisitei Matera, Gagliano e o velho e maltratado exemplar do Cristo Parou Em Eboli, da mesma biblioteca. Continua uma obra-prima que vale a pena saborear. Da Matera que se descobre no Google-Imagens continua-se a querer fugir. Levi tinha razão. Mas não digam isto a um italiano, que ainda hoje não gosta que lhe apontem a miséria do mezzogiorno.
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