
Quando o meu pai se despediu, um dos amigos que me tinha topado desde o início, agarrou nos livros e ofereceu-mos, o meu pai perguntou como é que se diz?, eu disse, e mais tarde, enquanto descia as escadas, olhei para uma das janelas igual às outras e pensei que, apesar de tudo, todos eles deviam ser felizes porque não tendo nada, tinham muitas coisas e estavam juntos, não precisavam de arrumar as tralhas enquanto liam livros do Major Alvega e do Príncipe Valente, os putos até podiam brincar com pistolas quase verdadeiras e almoçar enlatados, e eu naquele quarto até podia ser invisível. Nessa tarde choveu até anoitecer. Uma tempestade imensa varreu as montanhas. Quando trovejou as velhas rezaram e os homens esconderam-se a coberto do perigo. As traseiras da casa onde morávamos alagaram-se até ao joelho e o colchão onde eu dormia parecia uma ilha ensopada. O meu pai teve de fazer um buraco na parede de modo a escoar a água para a horta do vizinho. As roupas misturadas com batatas na lama, caixotes empilhados, chávenas de casquinha e álbuns de fotografias arrastados pela torrente das águas. Lembro-me do choro silencioso da minha mãe, e do meu pai encostado a um canto ancorado num cigarro, o olhar fixo e carregado, sem dizer uma única palavra. Lembro-me também de ter pensado que, vistas bem as coisas, os refugiados do lar talvez não fossem tão felizes quanto isso..