30/08/06

Encruzilhada, por José Clérigo

Há momentos decisivos na vida de um homem em que a consciência nos impõe o confronto com o destino. É altura de parar e, cara a cara, olhos nos olhos, colocar a questão primordial: que é feito do Ezequiel Canário?

25/08/06

O idiota, por Abd al-Malik

O idiota que aqui vedes retratado pelo pincel de Cristóvão de Morais deu nome a um mito idiota. E mais não fez. Há já muito que me dedico a estudar e a tentar perceber, sem sucesso diga-se, com uma profundidade que julgo inigualável, as razões da admiração que alguns dirigem a este idiota. E não me refiro a figuras de segundo plano: Pessoa basta. Mas há muitos outros. Romantizado ou mitificado, a verdade é que o idiota tem na memória colectiva portuguesa um lugar que não devia ter. É certo que muitos houve também, com António Sérgio à cabeça, que não perdoaram a idiotice ao idiota. Mas ainda assim, apesar de todas as evidências e contra toda a razoabilidade há quem continue a condescender com o idiota e a apresentá-lo como exemplo de espiritualidade sonhadora, grandiosidade e idealismo.

Há pouco, António Villacorta Baños-Garcia, um estudioso espanhol, publicou uma nova biografia do idiota. Deve dizer-se que o livro, apesar de correcto e bem escrito, fazendo um retrato isento do idiota, ao justamente considerá-lo um idiota irresponsável, não traz nada de novo. Excepção feita a uma sugestão desnecessária: que se colham amostras do túmulo do idiota para análise laboratorial do ADN para saber se realmente ali se encontram depositados os restos mortais do idiota. Assim se esclareceria uma dúvida que, em grande medida, foi a razão do mito. Eu, por mim, acho desnecessário. O idiota será sempre o idiota, quer os seus restos jazam, incógnitos no areal africano, quer sejam os autênticos depositados nos Jerónimos.

Muitas razões há para consagrar o idiota não só como o maior idiota da história de Portugal como um dos maiores idiotas da história da Europa. Esta basta: no dia 4 de Agosto de 1578, em apenas 3 horas, contra todos os avisos e conselhos, contra toda a prudência, sem nenhuma necessidade, com uma táctica militar completamente idiota, o idiota afundou-se juntamente com milhares e milhares de soldados. Não apenas portugueses, porque sob o seu comando combatiam castelhanos, alemães, italianos e mouros aliados. Foi a maior carnificina da história portuguesa e uma das maiores tragédias militares da história da Europa. Em apenas 3 horas, repito, soçobraram milhares e milhares de combatentes, de forma inglória, depois de haverem sido conduzidos para a desgraça mais do que adivinhável de forma absolutamente inconsciente e irresponsável. Gente bisonha, arrancada ao arado, incapaz de pagar o suborno que os isentaria da morte. Outros, cavaleiros irresponsáveis, aduladores do idiota, sedentos de glória. Os «últimos cruzados medievais», lhe chamam os admiradores contemporâneos, «o primeiro pateta moderno» lhe chamou acertadamente António Sérgio. Não se sabe ao certo quantos ali pereceram. Baños-Garcia fala em 14 000 sem especificar se contabiliza o total ou apenas os caídos no exército do idiota. Julgo tratar-se do total e que a fonte é Queiroz Velloso. Os números variam muito, todavia. Por exemplo, Aquilino Ribeiro, citando fontes árabes que não identifica, classifica a batalha de Alcácer como «uma carnificina cruel e despiedosa» onde terão perecido 6000 portugueses e apenas 18 mouros!? Noutra versão, José de Esaguy afiança, citando também «cronistas árabes nos seus escritos», que foi maior o número de mortos entre o exército mouro, o que «nos trouxe uma vitória passageira.» O melhor mesmo é desistir de encontrar um número mais ou menos seguro, pois as versões são várias. Carlos Leite afirma que Alcácer-Quibir «não foi uma vergonha; e, se foi uma desgraça não foi uma nódoa na história de Portugal», pois a batalha esteve quase ganha. Logo a seguir adianta 12000 mortos cristãos. Queiroz Velloso diz, por seu turno, que se tratou da batalha mais sangrenta que a Berbéria já presenciou e dá entre 5 e 6 mil mortos mouros, contra 7 ou 8 mil cristãos. O padre José de Castro cita um documento do Arquivo Secreto do Vaticano que fala em 50000 mouros tombados em combate. Afonso Dornellas diz ter recolhido de fonte marroquina a seguinte contabilidade: 10 mil baixas cristãs e 18 mil muçulmanas. Fiquemos por aqui.

Seja como for, em três horas morreram mais soldados do que em 13 anos de guerra colonial em três frentes, noutra guerra igualmente idiota. Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes contabilizam, de 1961 a 1974, nas três frentes, 4027 mortos em combate. O resto, até ao total 8290, foram acidentes de viação (1480), acidentes com armas de fogo (785) e causas indeterminadas (1998). Manoel de Oliveira e Manuel Alegre, entre outros, já traçaram o paralelismo entre as duas desgraças. É curioso o paralelismo, mas mais curioso é comparar o número de baixas para se constatar a dimensão da idiotice sebástica. Em apenas 3 horas! E nem se calcule a relação das baixas com os efectivos gerais da população, porque então a dimensão da tragédia é quase apocalíptica! Como é que este idiota pode ainda ser objecto de admiração e ser elevado ao estatuto de símbolo nacional?

No fim da batalha, as descrições são horríveis. O saque foi miserável. Os corpos entraram em putrefacção acelerada, devido ao calor tórrido. Das montanhas desceram os salteadores que se apossaram dos cadáveres. Despiram-nos, profanaram-nos, sentenciavam com um golpe de misericórdia os feridos suplicantes que não tinham valor para o resgate ou que estavam moribundos. Capturavam os feridos ligeiros ou valiosos. Foi uma orgia bárbara de sangue, indignidade e crueldade, por entre o cheiro da pólvora e da vergonha. O responsável tem nome. Foi um, exclusivamente: O idiota que ali vedes retratado pelo pincel de Cristóvão de Morais.

18/08/06

Carta a Esther Mucznick, por xpto

Hoje escrevi a Esther Mucznick. Mandei-lhe um e-mail através da página da comunidade israleita:

Coimbra, 18 de Agosto de 2006

Excelentíssima Senhora,
Começo por lhe pedir desculpa por me dirigir a si através deste endereço. Todavia, procurei em vão, quer nas folhas impressas do jornal «Público», quer na edição electrónica, um endereço por onde lhe pudesse fazer chegar algumas palavras.
Habituei-me há muito a lê-la nas páginas daquele jornal. Devo dizer que nem sempre concordo com as suas opiniões, mas sempre as reconheço inteligentes, rectas e dignas. Digo-lhe também que é a primeira vez que me dirijo pessoalmente, e ainda por cima por tão sinuoso caminho, a um articulista. Senti-me impelido a escrever para lhe expressar a minha mais profunda e sincera solidariedade. Refiro-me, como deve suspeitar já, à polémica (se é que assim se lhe pode chamar) suscitada pela Drª Isabel do Carmo. Não consigo entender como é que alguém pode afirmar o que despudoradamente a Drª Isabel do Carmo afirmou a propósito do Hezzbollah. Esta organização, como Vª Exª tão claramente afirma, não é um partido político, muito menos democrático. Vª Exª, compreensiva, diz tratar-se de ignorância opinativa. Não concordo. A ignorância não chega para explicar tamanha inanidade. É preciso mais. Os motivos que alimentam tão despropositada cegueira suspeito-os hediondos. Desejo até que não existam e que não passe de temor meu, mas receio que o que leva alguém a laborar na «ignorância» para afirmar o hediondo não se possa caracterizar como inconsciência. Porque a ignorância ou é socrática e não consente inanidades, ou disfarça-se com a discrição após o que se aniquila com o estudo Há algo de muito preverso que me escapa ao entendimento na «ignorância» da Drª Isabel do Carmo. Como ao entendimento me escapa, por exemplo, quando um homem como Gunter Grass admita agora, com um escândalo mínimo face à gravidade dos factos e até com manifestações de solidariedade, ter pertencido às SS. Acho absurdo, escapam-me à razão as razões de tanta hediondez. José Manuel Fernandes afirma hoje que o escritor, na sua genialidade, permanece incólume no seu estatuto artístico e literário. Assim é, posto que consideremos como na contemporaneidade a estética se emancipou da ideia de Bem. O Belo é possível sem razão moral. Mas a minha questão é outra: o que leva um homem a professar o Mal? Como foi possível conviver tantas décadas com a culpa? Acredito até que a actual confissão pública, antes de movida por interesses comerciais e dada a idade do autor, seja ditada por um sincero sentimento de arrependimento. Mas eu não consigo entender, e por isso me declaro incapaz de perdoar. Acho até, contrariamente aos adeptos das filosofias do absurdo, que as tragédias quotidianas, as incomensuráveis manifestações da dor e as exibições do Mal só podem ser entendidas e perdoadas por uma qualquer Transcendência, eternamente misericordiosa e com uma infinita magnanimidade. Por isso o Mal absoluto só pode supor o Bem como instância transcendente onde se torna perdoável, assim se evitando o absurdo dando-se sentido à existência. É o único nível onde posso acolher as palavras da Drª Isabel do Carmo.
Perdoe-me a liberdade com que me dirigi a Vª Exª. Atenciosamente, com a máxima admiração,
xpto

17/08/06

Francis Obikwelu e Maria João Pires, por Francis Pires

Confesso que não me comovo pela razão, que afinal é minha, que tudo o que meta trapos nacionalistas, vulgo bandeiras, mais hinos e cerimónias protocolares me arrepia a pele e causa repulsa. Mas este nigeriano intriga-me. Melhor, este português de gema intriga-me e suscita-me uma profundíssima admiração. Para mim, é português quem quer. Ou devia ser. O mesmo deveria valer para as outras, todas, as nacionalidades. Ninguém deveria ser discriminado à nascença por uma casualidade que não pôde influenciar, por uma circunstância que não atenta ao mérito: o local onde se é parido. Se as históricas discriminações com base na cor da pele ou na confissão religiosa foram, e são, horrorosas, muito mais o é a segregação - mais condenação do que segregação para a maior parte das trágicas histórias do Terceiro Mundo - com base na naturalidade. É inaceitável para qualquer mente sensível. É imoral, por exemplo, que um primeiro-violino da Orquestra de Kiev ande agarrado a um martelo pneumático nas obras da construção civil, sem qualquer protecção do Estado, sem Segurança Social e sujeito aos abusos dos empreiteiros que aproveitam a mínima fragilidade alheia para facturar mais uns tostões, enquanto as nossas escolas estão infestadas de diplomados uma qualquer academia chunga a ensinar as crianças a soprar no pífaro e a cantar o solidó. E os papéis não se invertem, como deviam, por causa de um bilhetezinho, dito de identidade, que confere a um o privilégio da nacionalidade e a outro a maldição da clandestinidade!
Por isso, a história de Francis Obikwelu é a mais bela e dignificante de todas as figuras públicas que enxameiam o nosso quotidiano. Numa certa medida, pelo seu passado pessoal, e dada a projecção mundial que atingiu, Obikwelu é o mais digno de todos os portugueses, isto se a dignidade resultar, como é bom que resulte, de um misto de mérito pessoal, sucesso, preserverança, trabalho, luta contra a adversidade e a injustiça, humildade e dedicação. Nenhum benefício recebeu do berço. Fosse a família ou a Pátria. Ninguém o ajudou, lutou contra todos. Teve a coragem de desertar e abdicar do país no qual não se reconhecia - a Nigéria. E fez-se ao caminho, sozinho. Humilde, empregou-se na construção civil. Uma cidadã inglesa a residir no Algarve reparou nas suas capacidades e recomendou-o a um amigo que era treinador de atletismo. A partir daí foi um galgar de degraus até ao topo do atletismo mundial onde é uma das figuras. Treina-se em Espanha, porque cá não há condições. Entretanto, no Algarve onde Obikwelu transportava baldes de massa dando serventia na construção civil, vai ganhando teias de aranha aquele que é o maior monumento à estupidez nacional: o Estádio Intermunicipal Faro-Loulé. Ou seja, para o Obikwelu correr não há pista, mas para o Farense, o Louletano, e quem sabe o Almansilense, que agonizam nas divisões secundaríssimas do futebol luso, lá está um estádio com 30 mil lugares, que só com os burros todos do país se encheria e exíguo se revelaria. Brilhante!
Como é fácil de ver, Obikwelu não deve nada a este país. O país tratou-o mal, explorou-o, não lhe soube descobrir o talento. Ainda agora, o destaque que deram às suas vitórias não é de modo nenhum condizente com a dimensão dos seus feitos. Lembremos que o país delirou quando o Monteiro da Fórmula 1 subiu ao podium da mais vergonhosa corrida automobilística de que há memória. Quando todos desistiram, como forma de protesto contra o despotismo da organização, o Monteiro correu, com mais dois fura-greves e ficou em terceiro. O país foi delirou, desfraldou os trapos e cantou os hinos da praxe. Recordo também como o Pedro Lamy que uma vez, se a memória me não falha na Austrália, ganhou um pontito numa corrida, e logo o Sampaio lhe deu uma medalha. Foi o delírio. Com o Hóquei em Patins, o mais paroquiano dos desportos, cada vitrória dos moços é cantada como se fosse um feito épico. Livramento e Ramalhete são Aquiles Ajaxes na memória da imprensa especializada. E ninguém, nem Joaquim Agostinho, nem Carlos Lopes, nem Rosa Mota, nem Eusébio, nem 10 Figos, alguma vez lograram o que este digno português de nome nigeriano agora alcançou. Se Lopes e Mota têm pavilhão com o seu nome, Obikwelu, no mínimo, mereceria que o Pavilhão Atlântico fosse rebaptizado Pavilhão Obikwelu! É que ele é duplo campeão europeu dos 100 e 200 metros, uma das mais difíceis e competitivas especialidades do desporto mundial. Nos 100 metros é, aliás, bicampeão, pois que nos últimos campeonatos quem lhe ganhou foi batoteiro e o título foi-lhe retirado. Lembremos que Agostinho se encharcava em doping e tal não lhe impediu a consagração pública. Além dos feitos olímpicos que já alcançou também, Francis Obikwelu, estando ainda no activo, é já o maior desportista português de todos os tempos. Este facto parece não estar a ser devidamente salientado. O país , mais uma vez, não é justo. E, todavia, Francis insiste em correr sob as cores nacionais e a desfraldar o trapo verde-rubro após cada uma das suas retumbantes vitórias. Para mim, isto é um enigma.
Entretanto, a excelentíssima senhora Maria João Pires nasceu num país, apesar de tudo, civilizado. Teve berço. Nunca foi forçada a trabalhar nas obras. Teve as condições pelo menos suficientes para se tornar uma das mais importantes e consagradas executantes musicais da actualidade. Devo dizer que tal também não me comove. Aprecio-lhe o talento como se ela fosse polaca, nigeriana ou servo-croata. É esta uma das características da actividade artística: a sua universalidade. Quando se atinge um certo patamar de qualidade e excelência, o artista e a sua arte tornam-se universais, libertam-se das circunstâncias temporal e espacial. Eternizam-se. Por isso, e por exemplo, Picasso não é espanhol, nem Rostropovich é russo, ou americano, ou israelita. É do Mundo! Por isso, em Salzburgo, por exemplo ainda, não há cerimónias protocolares de entrega de medalhas, nem hinos cantados.
Por estas razões, acho irrelevante que Maria João Pires se tenha ausentado para o Brasil, para a Baía. Eduardo Prado Coelho disse que era um belo sítio para viver. Não sei se quis dizer para se «exilar», eu digo que é um belo sítio para amuar. Porque a senhora está amuada. Declarou-se zangada com Portugal, bateu com a porta e foi para o Brasil. E porquê? Porque, segundo a genial pianista, o Estado não a apoia. Ora, o Estado não só a apoia, com apoios que davam para alimentar e treinar para aí alguns mil Obikwelus, como não vê a justificação dos gastos para os apoios fornecidos. Como referiu o mesmo Eduardo Prado Coelho, nem um simples Deve / Haver rabiscado em papel de embrulho, à maneira das antigas mercearias de bairro, a senhora se dignou apresentar. Amuou, declarou-se cansada do país e debandou para o Brasil, não sem antes descansar os indígenas garantindo que o projecto de Belgais prosseguirá. Esperemos que sim e com as despesas justificadas. Se quiser continuar as sustentar-se com fundos públicos, claro. Pois passe muito bem, minha senhora, continue Vossa Excelência a ser o que é, uma das mais geniais pianistas da actualidade, que nós cá continuaremos a sobreviver, como o temos feito melhor ou pior ao longo do último milénio, quase sempre sem a presença de Vossa Senhoria. Teremos certamente o prazer de acompanhar a nossa existência futura e próxima ao som das suas magníficas interpretações que certamente a senhora não deixará de gravar para nosso (do Mundo, entenda-se) usufruto. Prometo que nas próximas Olimpíadas assistirei aos sprints de Obikwelu ao som das suas interpretações de Brahms, Debussy, Chopin ou Mozart, conforme o que Vossa Senhoria entender mais apropriado e se, por maravilhoso acaso atentar neste desabafo e se dignar adiantar uma sugestão. Como é óbvio.
Para finalizar, uma perguntazinha às autoridades competentes: a senhora não é acusada porquê? Porque não vai responder a tribunal? Se fosse eu a não dar justificação a uns subsídios atribuídos no valor de uns largos milhares de contos, a coisa ficava assim? Podia ir para o Brasil descansado que ninguém me impedia?

16/08/06

Perdoável ou Não?, por Simão Visentálo

Li agora no «Público» uma breve notícia que me perturbou: Gunter Grass apresta-se para editar uma auto-biografia onde confessa, 60 anos após, que pertenceu às SS! Isso mesmo, às SS! Não foi à Juventude Hitleriana, na qual Ratzinger militou, cuja filiação era obrigatória para todos os jovens e, apesar de os submeter a treino nacionalista e militar, não tinha comparação possível com as SS. Estes eram a guarda pretoriana do nazismo, o seu núcleo duro. Racistas, anti-semitas, apóstolos do Holocausto, exterminadores impideosos. Eram submetidos a um treino duríssimo após recrutamento exigentíssimo e criterioso. Não era quem queria, embora querer fosse determinante. Grass confessa que nunca se interrogou acerca da morte de um tio ou do desaparecimento de um professor. Não tinha 12, nem 14 anos, tinha 17 anos. Aos dezassete, quem entra para as SS não o faz inconscientemente. Como pode Grass esconder esta horrorosa nódoa do seu passado durante tanto tempo? Ninguém sabia? Como é que ninguém o denunciou? Está arrependido? Como conseguiu viver com a memória do nazismo? Não o equiparem a Junger ou a Riefensthal. Não! As SS é outra coisa! É perdoável? Julga-se? Põe-se uma pedra sobre o assunto?

15/08/06

Um Espectáculo Litúrgico, por Big Jagger

A 12 de Agosto, no Estádio do Dragão, quase 50 mil pessoas ouviram Sir Mick Jagger falar em português: "É muito bom tocar nesta linda cidade pela primeira vez." Os bilhetes não esgotaram, apesar da imensa mole humana, e foi lindo ver os candongueiros a tentarem vender os bilhetes desesperadamente ao preço de custo.
A primeira parte coube aos Dandy Warhols. A banda, ainda que já consagrada, era-me desconhecida e foi uma agradável surpresa. O Estádio estava então pela metade. Houve quase uma hora de espera até que os Stones entrassem em palco. Entretanto, a malta do merchandising oficial vendia de tudo: pins dos Stones, T-shirts dos Stones, porta-chaves dos Stones, bonés dos Stones, luzinhas cintilantes, com o logotipo dos Stones, etc. Nos bares vendiam-se hot dogs e coke, cerveja e hot dogs, tudo a preços exorbitantes. A longa espera estava calculada. Por mais que o público assobiasse e aplaudisse de forma cadenciada a exigir a entrada de Jagger&Richards, a verdade é que o esforço era vão. Eles são profissionais e são míticos. Entram quando quiserem. Assobiem se bem entenderem e comprem T-shirts, bebam coke e comam hot dogs. Também podem enviar um sms para o 4004 com a palavra "Stones" e habilitam-se a assistir ao espectáculo de um varandim especial montado no palco principal. Aquilo é uma máquina de fazer dinheiro. Mas há uma garantia: qualidade e profissionalismo.
Enquanto isso, o relvado ia enchendo. A cada um dos lados, sob as torres de iluminação, montaram-se dois pequenos estrados com cadeiras de plástico para os VIP's! Está mal! É uma idiotice. Ou se é VIP e não se vai para a relva para junto do povo, ou se é povo na relva sem qualquer tratamento VIP. O misto é assim como comer sardinha assada em cerâmica de Limoges com talher de prata e vinho a martelo em cristal de Veneza. De repente, as luzes apagam-se, ouve-se o riff de Keith Richards e logo a seguir entram diabólicos, com Jagger à frente, o écran luminoso num vórtice colorido de imagens: Jumpin' Jack Flash! É o delírio. O som está excessivamente eléctrico, ensurdece, mas ninguém se importa. O ecran continua a fazer desfilar uma imagem de um Big Bang cósmico numa espiral de imagens retalhadas que vai desaguar no cover do último album da banda, «A Bigger Bang» que é um remake da obra de Joseph Wright (1734-1797), A Philosopher Lecturing with a Mechanical Planetary. A seguir, sem deixar passar o impacto inicial, e ainda no mesmo ritmo estridente, vem o It's Only Rock'n'Roll. O espectáculo ainda agora começou e já valeu a pena. Depois, o primeiro tema do último album: Oh No Not You Again. Além desta, e do último CD com 16 originais, apenas tocariam mais dois: Streets of Love e Rough Justice. No geral, o show foi servido à base de reinterpretações de temas históricos, com grande liberdade de improvisação e novas versões, especialmente no final quando, no segundo encore, tocam Satisfaction numa versão apoteótica, orgástica, com fogo de artifício a ejacular luz de ambos os lados do palco, com o coro a repetir o refrão numa versão Soul, Jagger a menear-se como se fosse uma Josephine Baker e Richards a divagar na guitarra com Ron Wood. O alinhamento foi mais ou menos este: Let's Spend The Night Together, Ruby Tuesdey, Tumbling Dice e Midnight Rambler. Segue-se uma magnífica homenagem a Ray Charles, aparecendo a foto no painel gigante, e um dueto extraordinário com Lisa Bishop: The Night Time is the Right Time. Inesquecível. Se aquilo fosse uma orgia, que não era, era mais litúrgico, o público já estaria todo molhado para aí com quatro ou cinco orgasmos em cima. Era tempo para o descanso, antes de uma segunda investida. Nessa altura reparei num hábito completamente idiota, além daquele de ir para os concertos com bandeiras de Portugal, que é o de ver o espectáculo através do minúsculo visor do telemóvel! É completamente idiota, mas é verdade: há milhares de pessoas que vão com o telefone, ou com a máquina fotográfica digital, e passam o santo concerto a espreitar para o monitor LCD e a disparar sucessivamente como se aquilo fosse um safari fotográfico! Não consigo entender. É a altura de Keith cantar o seu par de canções, enquanto Jagger recolhe aos bastidores para um justo descanso. Richards, que recusou ser Sir, não falou em português. Ele não é simpático, nem cavalheiro. Limita-se a um «It's nice to be here», mas acaba por não resistir e acrescenta: «What the hell... it's nice to be everywhere!» e arranca com Slipping Away e Before They Make Me Run
A seguir vem a procissão. Como é tradicional nos concertos dos Stones, a banda atravessa a relva até ao topo oposto ao palco principal. Normalmente vão a pé e aos pulos. Desta vez, porém, do palco principal destacou-se uma plataforma rectangular que se sobrelevou ligeiramente e para onde previamente o staff empurrara Charlie Watts com os seus tambores e, depois, ao som de Miss You, o rectângulo, subitamente iluminado com luzes a todo o perímetro, deslizou suavemente como se fosse um andor. Jagger parecia a imagem de Nossa Senhora de Fátima aos pulos, Richards e Wood esgalhavam as guitarras e Watts lá estava a tamborilar fleumático e paciente como se fosse uma competentíssima babby-sitter. No final do percurso, e por entre a ovação delirante do público bafejado pela atenção, tocaram She's So Cold e regressaram com uma electrizante Honky Tonk Women, tal qual a Rainha Santa Isabel que regressa ao alto de Santa Clara. Cumprido o trajecto, acendem-se as luzes e uma enorme língua insuflável apareceu no palco, lambendo o público num cunnilingus monumental! Estava tudo no ponto. Se fosse uma orgia, que não era, era mais uma liturgia, estaríamos todos prontos para a enrabadela final. E lá veio ela: SYMPATHY FOR THE DEVIL! As luzes vermelhas, Jagger de cartola vermelha e casaca de veludo vermelho, no cimo do palco dois enormes lança-chamas cuspiam diabólicas labaredas alaranjadas. Jagger corria que nem um louco, de um lado para o outro do palco, trepava ao varandim central e incitava o público: UUUH-UUUHH, e o público respondia, gemendo satisfeito e saciado: UUUH-UUUHH! Richards e Wood esgalhavam as guitarras enquanto Watts, paciente, assistia impávido batendo as baquetas. Prostrados, enfartados de gozo, todos os membros do público se preparavam para respirar quando soam os acordes de Brown Sugar. Oh, meu Deus, aí vem o gajo outra vez, cheio de pica!, diríamos nós se aquilo fosse uma orgia, que não era, era mais uma liturgia. E lá voltávamos nós a berrar em uníssono o refrão. Acabou-se. O encore foi o anunciado e previsto. Além de Satisfaction, You Can't Always Get What You Want, cantado num coro desafinado de cinquenta mil vozes. Aplausos e ponto final. Fogo de artifício, uns efeitos especiais e escusam de bater mais palmas, de pedir mais encores. Entraram às dez horas certas, quando quiseram e saem agora. São profissionais. O espectáculo acabou. Não há afectos, além das artificiais frases feitas de Mick Jagger ditas em português que, por artificiais, não são nada afectuosas. Se aquilo fosse uma orgia, que não foi, foi mais uma liturgia, dir-se-ia que foi uma sessão magnífica de sexo profissional. No final é pagar e vazar. Não há pequeno-almoço, nem veremos Jagger desmaquilhado nem Richards em pijama.