Na passada quarta feira Caetano Veloso, um dos maiores génios vivos da história da música contemporânea, veio a Coimbra apresentar ao vivo o seu último disco, Cê. Pelo que me apercebi, uma grande parte das pessoas não gostou do concerto. Compreende-se: as pessoas deviam ter sido avisadas antes de comprarem os bilhetes. Um pouco como quando compramos tabaco e temos que gramar com imagens de crâneos humanos nos maços e letras estridentes a avisarem-nos que «O tabaco mata». Até era giro, um bilhete para a primeira plateia e no verso a letras garrafais: «Aviso: este concerto é só para incondicionais. Pode prejudicar gravemente a sua saúde».
Pois foi. Caetano podia ter avisado a malta… Dizia logo no início: «não toco o Leãozinho nem o Sozinho nem o Menino do Rio. Não que não sejam excelentes músicas, que obviamente são, mas tou farto, prontos!»
Mas não foi por estar farto, digo eu, que o Caetano não tocou as suas músicas mais populares. Acontece que cada concerto dele tem subjacente um conceito. Vi o génio da Bossa Nova 6 vezes ao vivo e não houve um único concerto igual. Caetano parte sempre de uma ideia que desenvolve e explora. E no conceito subjacente a este concerto não entravam os sucessos e, muito menos, versões clean dos sucessos. Quem o conhece já sabia previamente ao que ia. Quem não o conhece devia ter tido o tal aviso no bilhete.
A primeira vez que o vi ao vivo, no Coliseu de Lisboa, o conceito foi a Simplicidade, a Pureza., a Natureza... Foi um concerto solar quase unplugged com violões e batuques. Fiquei siderado! No fim, após três ou quatro encores, o menino do rio, ainda teve arrojo para descer do palco e vir sentar-se numa cadeira diante do público, já com as luzes do Coliseu acesas, para nos brindar com uma inesquecível interpretação de Tigreza. Só voz e violão.
O segundo concerto que vi dele, chamava-se Totalmente Demais e deu nome a um disco. O conceito foi a Intimidade. Foi uma coisa quente, apaixonada, num formato small space: no Brasil Caetano fez esta tornée em pequenas salas, aquilo tornou-se um mega sucesso e em Portugal acabou por passar, mais uma vez, nos Coliseus. Mas manteve-se algo daquele clima original de intimidade e confessionalismo. Lembro-me de uma versão de Billy Jean de Michael Jackson, que haveria de ser gravada posteriormente. Fantabulástica! Caetano faz ouro do que quer que seja…
Pelo meio vi-o numa Queima das Fitas em Coimbra, ainda no velhinho Parque Manel da Nóbrega. As Queimas devem ser os piores locais de todo o planeta para músicos com a qualidade de Caetano. O concerto foi prejudicado pelos beberrões habituais e pelos putarrecos armados ao pingarelho, mas percebeu-se algo da ideia inicial de Caetano. Eu diria que a Transgressão foi o conceito adoptado, numa tentativa de se adequar a um hipotético ambiente estudantil. Guardei desse concerto a memória das canções ambíguas de Caetano (como Ele Me Deu Um Beijo Na Boca), um Caetano muito próximo de Ney Matogrosso. A estudantada não achou piada, pudera, mas até aí Caetano foi ele mesmo e não cedeu a facilitismos. Despediu-se com um beijo na boca ao guitarrista.
O quarto concerto foi o pior de todos. Achei o Caetano irreconhecível. Toda a gente sabe que Prenda Minha foi o álbum que fez explodir comercialmente a carreira de Caetano Veloso. Muito por culpa da música Sozinho (ironia das ironias, nem sequer é um original de Caetano). Caetano veio ao Porto e deu o mais comercial de todos os seus concertos: reproduziu, quase integralmente Prenda Minha, como fazem todos os músicos que não são geniais como ele. O Coliseu do Porto veio abaixo e eu não reconheci Caetano. No fim acabou tudo a dançar os sambas que ele tocou como no disco e eu nem reagi. Não que o concerto fosse mau, não que não goste de Prenda Minha, mas é o Caetano, pá, eu tenho o Caetano como um dos meus maiores heróis musicais, praticamente no mesmo patamar de Mozart, de Amália, de Brel, de Vínicius, dos Stones dos velhos tempos, dos Beatles…
Mas o Caetano também não gostou do retrato de Prenda Minha. Ele próprio confessaria mais tarde que aquele disco não era o Caetano Veloso genuíno, o músico genial que já tinha mais que uma boa dezena de discos editados, sem atingirem, todos juntos, os milhões de vendas de Prenda Minha. Podia ter-se rendido e ficava a fazer mais música daquela. Mas não: decidiu continuar a experimentar e a explorar novos conceitos musicais. Vi-o pouco depois em Coimbra num dos melhores concertos a que alguma vez assisti: Noites do Norte.
Noites do Norte voltava a ter um conceito que não a reprodução das faixas mais populares com o anterior. É incontornável a presença de Jacques Moremlembaum nesse disco. Dele disse Caetano, que o ensinou a «não ter medo da música». Morenlembaum é um músico de formação clássica, toca violoncelo e acompanhou, entre outros, músicos de vanguarda como Arto Lindsay e compositores magistrais como Riuchy Sakamoto. Noites do Norte tem a sua marca. Acho que o concerto teve com conceito chave a ideia de Miscegenação. Caetano misturou os géneros, às tantas não sabíamos se o que estávamos a ouvir era rock, se musica de câmara. Foi brilhante, um dos melhores concertos que já vi, infelizmente prejudicado, mais uma vez, por hordas de jovenzarros que foram para ali conversar em vez de ficarem nas docas a emborcar cervejolas. Foi em Coimbra, pois, e houve um criminoso qualquer que se lembrou de meter os bilhetes a vinte e cinco tostões. Resultado: caiu lá toda a tralha e aquele momento único só não foi estragado porque a boçalidade não arranha a genialidade. Não me lembro de nenhuma música em especial desse concerto: lembro-me da sonoridade, lembro-me daquela noite como se todas as músicas fossem uma só, tal a fusão e a envolvência conseguidas, não por um, mas por dois génios da música contemporânea: Caetano e Morenlembaum.
E foi depois de todo este percurso que voltei a um concerto do Caetano: na última quarta, Cê. O concerto foi, mais uma vez, brilhante, absolutamente genial, com momentos de criatividade absoluta. O conceito? Entropia. Caetano subverteu tudo. Tocou as músicas de Cê, considerado pela empresa especializada americana como um dos melhores álbuns de rock do ano. Com uma formação band garage – bateria, baixo, guitarras -, Caetano foi buscar as músicas que mais se adequaram a este conceito. Tocou, de fundo de catálogo, algumas bem antigas da sua fase londrina – como You don`t know me de Transa (1972), Nine out of Ten e Shy Moon (de Velô). Até cantou uma das minhas músicas preferidas – London London, mas numa versão completamente entrópica, de acordo com o conceito subversivo do concerto. Rebuscou O Homem Velho, Os Novos Baianos, uma excelente versão de Fora da Ordem e passou Cê, quase de fio a pavio. Pelo meio tocou dois temas mais conhecidos – Desde que o Samba é Samba, o inesquecível Cucurrucu Paloma (já comentado no Porco em Post aqui: http://tapornumporco.blogspot.com/2004/05/as-msicas-do-porco-cucurrucuc-paloma.html) aqui numa versão em que se nota a falta do violoncelo de Morenlembaum, mas sempre sem cedências. Desde que o Samba é Samba é uma bossa nova certinha, bela, compassada: na versão apresentada no concerto tem um enorme solo de bateria pelo meio. Eu achei coerente, em conjugação com o estilo radical e surpreendente do concerto. Não que não adore as versões originais, mas tudo tem o seu lugar. E houve tempo ainda para Estranha Forma de Vida da Deusa Amália.
No fim do concerto encontrei por lá o nosso Arquitecto, himself, talvez o esteta mais radical do Tapor, o único ser humano que alucinou com uns gajos barulhentos que um dia vieram a Coimbra fazer a primeira parte dos Stones e de cujo nome já ninguém (nem ele) se recorda. «Ora aqui está alguém que adorou, como eu, o espectáculo», pensei. Mas não. O Arquitecto não foi lá muito à bola com aquela «estragação» do Caetano. Percebe-se, pois, o nível de arrojo estético a que chegou Caetano, pois se nem o Arquitecto…
No meio daquilo tudo houve uma música que, sem dúvida, marcou todos os presentes. Faz parte de Cê e chama-se Estou-me a Vir. Nela Caetano grita e geme e grunhe, em português de Portugal, que se está a vir umas 50 vezes. O Pavilhão Multiusos riu às gargalhadas enquanto Caetano interpretava esta música de letra impronunciável. No fim dos cerca de 5 minutos que dura a canção, alguém gritou, da plateia: «És tântrico». E foi…
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