Quando no dia 21 de Fevereiro Mickey Rourke subir ao palco para receber a estatueta de Melhor Actor Principal pela sua actuação em The Wrestler (2008, Darren Aronofsky), o Diabo, algures escondido no cimo da colina atrás do grande letreiro Hollywood, vai soltar uma gargalhada sonora que se há-de ouvir às portas do Inferno. Foram quinze anos de travessia no deserto saltando entre filmes de péssima qualidade para sobreviver e o boxe profissional ao qual regressou, diz que para ajustar contas com o passado, que por paixão, que por ser um jogo limpo, que por conseguir, no ringue, soltar toda raiva acumulada contra alguns produtores e executivos do meio. Com The Wrestler, Rourke, o amaldiçoado, reencontra o talento que nunca lhe faltou e protagoniza um dos mais convincentes regressos da história do Cinema.
Domínio perfeito de expressão perante as câmaras aliada a uma forte atitude. Presença e magnetismo. Estilo próprio. MR era assim nos anos 80. Imagem iconográfica criada a partir de personagens como John de 9 ½ Semanas, Motorcycle Boy de Rumble Fish, “Boogie” de Diner, Charlie de The Pope of Greenwich Village, Johnny Angel de Nas Portas do Inferno, Chinaski/Bukowski de Barfly, ou Stanley White de O Ano do Dragão. Sobre Noites Escaldantes de Lawrence Kasdan diz apenas que apareceu por lá, fez o que lhe mandaram, recebeu bom dinheiro e foi-se embora comprar uma casa para o irmão que estava a morrer de cancro. Depois, veio o abismo: os combates profissionais, as companhias pouco recomendáveis dos gangs de motoqueiros, a carga de porrada nos tipos que vendiam heroína à mulher e lhe valeu a primeira detenção, o divórcio de Carre Otis, a falência, os medíocres filmes de acção que considera tão maus que nem sequer os viu alguma vez. Fiz esses filmes pelo dinheiro, afirma com o mesmo à vontade com que jurou um dia mijar na campa do todo-poderoso Samuel Goldwin Jr., o produtor de A Prayer for the Dying por ter transformado um filme supostamente com mensagem política numa vendetta-à-Chuck Norris. Rourke colou-se aos independentistas irlandeses, lamentou a desvirtualização do argumento, tatuou o IRA no ombro e desapareceu.
Impulsivo e não conformista, o homem refém de demónios privados sobrepôs-se ao actor politicamente correcto e criou o mito de um selvagem perfeccionista, difícil de aturar, seduzido por processos de marginalidade social, auto-destruição e desprezo para com os jogos de poder dos grandes estúdios. A ovelha negra de uma geração de estrelas que trocaram o compromisso sério de serem actores pelas capas de revistas e pelos milhões em bilheteira das mega-produções à Spileberg-para-toda-a-família-incluíndo-ETs. De nada lhe valeu ter trabalhado com Coppola, Michael Cimino, Alan Parker, Kasdan, Barry Leavison, pois acabaria rejeitado por Martin Scorsese, entre outros, por ser considerado problemático. Ele próprio teve péssimas opções de casting e rejeitou o papel de Butch em Pulp Fiction que lhe foi oferecido por Tarantino e que acabou por ser para Bruce Willis, naquele que marcou o regresso em grande de Travolta. Nesses anos, a julgar pelas suas palavras, é bem possível que Rourke sentisse falta do anonimato para não aparecer nas capas dos jornais cada vez que esmurrava alguém. A única aparição fugaz que merece ser vista aconteceu em A Promessa (2001) de Sean Penn. Dois minutos e meio com Jack Nicholson sentado em frente a escutar e Rourke em monólogo, mastigando nas palavras o sal da perda irreversível, invisível, ali, acanhada aos pés descalços de um homem perdido no Inverno. Um cameo de dois minutos e meio absolutamente transformistas e carregados de Método.
Mas Tarantino voltou a dar-lhe a mão em Sin City (2005). Marv é o melhor personagem de um filme brilhante que respeita visualmente o traço e a mancha inconfundível de Frank Miller. Em The Wrestler, o sorriso desapareceu-lhe. Emerge-lhe, na linha descendente do olhar desencantado, um rosto de retalhos e cicatrizes das cirurgias reconstrutivas que lhe roubaram para sempre o tal sorriso promocional. A sua actuação é de uma honestidade pungente. Não há ali lugar à remição, não há concessões e segundas oportunidades são para quem as tem. Atente-se à cena do discurso no ringue antes do último combate naquele registo evocativo e subliminarmente biográfico como se de uma despedida e, ao mesmo tempo, de uma apresentação se tratasse, antes do derradeiro salto. Na verdade, ninguém mais poderia fazer o papel de Randy “The Ram” porque nenhum outro actor é de corpo tão imenso e de espírito tão devastado.
Sean Penn teve mais um enorme desempenho em Milk, e Frank Langella até a voz gutural de Nixon captou em Frost/Nixon. Qualquer um destes dois poderia ser o premiado, mas o Diabo está mortinho para soltar uma gargalhada porque não é todos os dias que um Hell Angel ganha o Oscar.
Domínio perfeito de expressão perante as câmaras aliada a uma forte atitude. Presença e magnetismo. Estilo próprio. MR era assim nos anos 80. Imagem iconográfica criada a partir de personagens como John de 9 ½ Semanas, Motorcycle Boy de Rumble Fish, “Boogie” de Diner, Charlie de The Pope of Greenwich Village, Johnny Angel de Nas Portas do Inferno, Chinaski/Bukowski de Barfly, ou Stanley White de O Ano do Dragão. Sobre Noites Escaldantes de Lawrence Kasdan diz apenas que apareceu por lá, fez o que lhe mandaram, recebeu bom dinheiro e foi-se embora comprar uma casa para o irmão que estava a morrer de cancro. Depois, veio o abismo: os combates profissionais, as companhias pouco recomendáveis dos gangs de motoqueiros, a carga de porrada nos tipos que vendiam heroína à mulher e lhe valeu a primeira detenção, o divórcio de Carre Otis, a falência, os medíocres filmes de acção que considera tão maus que nem sequer os viu alguma vez. Fiz esses filmes pelo dinheiro, afirma com o mesmo à vontade com que jurou um dia mijar na campa do todo-poderoso Samuel Goldwin Jr., o produtor de A Prayer for the Dying por ter transformado um filme supostamente com mensagem política numa vendetta-à-Chuck Norris. Rourke colou-se aos independentistas irlandeses, lamentou a desvirtualização do argumento, tatuou o IRA no ombro e desapareceu.
Impulsivo e não conformista, o homem refém de demónios privados sobrepôs-se ao actor politicamente correcto e criou o mito de um selvagem perfeccionista, difícil de aturar, seduzido por processos de marginalidade social, auto-destruição e desprezo para com os jogos de poder dos grandes estúdios. A ovelha negra de uma geração de estrelas que trocaram o compromisso sério de serem actores pelas capas de revistas e pelos milhões em bilheteira das mega-produções à Spileberg-para-toda-a-família-incluíndo-ETs. De nada lhe valeu ter trabalhado com Coppola, Michael Cimino, Alan Parker, Kasdan, Barry Leavison, pois acabaria rejeitado por Martin Scorsese, entre outros, por ser considerado problemático. Ele próprio teve péssimas opções de casting e rejeitou o papel de Butch em Pulp Fiction que lhe foi oferecido por Tarantino e que acabou por ser para Bruce Willis, naquele que marcou o regresso em grande de Travolta. Nesses anos, a julgar pelas suas palavras, é bem possível que Rourke sentisse falta do anonimato para não aparecer nas capas dos jornais cada vez que esmurrava alguém. A única aparição fugaz que merece ser vista aconteceu em A Promessa (2001) de Sean Penn. Dois minutos e meio com Jack Nicholson sentado em frente a escutar e Rourke em monólogo, mastigando nas palavras o sal da perda irreversível, invisível, ali, acanhada aos pés descalços de um homem perdido no Inverno. Um cameo de dois minutos e meio absolutamente transformistas e carregados de Método.
Mas Tarantino voltou a dar-lhe a mão em Sin City (2005). Marv é o melhor personagem de um filme brilhante que respeita visualmente o traço e a mancha inconfundível de Frank Miller. Em The Wrestler, o sorriso desapareceu-lhe. Emerge-lhe, na linha descendente do olhar desencantado, um rosto de retalhos e cicatrizes das cirurgias reconstrutivas que lhe roubaram para sempre o tal sorriso promocional. A sua actuação é de uma honestidade pungente. Não há ali lugar à remição, não há concessões e segundas oportunidades são para quem as tem. Atente-se à cena do discurso no ringue antes do último combate naquele registo evocativo e subliminarmente biográfico como se de uma despedida e, ao mesmo tempo, de uma apresentação se tratasse, antes do derradeiro salto. Na verdade, ninguém mais poderia fazer o papel de Randy “The Ram” porque nenhum outro actor é de corpo tão imenso e de espírito tão devastado.
Sean Penn teve mais um enorme desempenho em Milk, e Frank Langella até a voz gutural de Nixon captou em Frost/Nixon. Qualquer um destes dois poderia ser o premiado, mas o Diabo está mortinho para soltar uma gargalhada porque não é todos os dias que um Hell Angel ganha o Oscar.
7 comentários:
O gajo das 9 semanas a fazer de lutador de wrestling? E isto é bom Mangas? Não sei, mas tou desconfiado, não me puxa... Eu do Rourke só me lembro é das gajas que o acompanharam, da kim basinger e da Carrie Otis. Mas se tu dizes que é bom e me arranjares o filme, prometo que o vejo. Mas uma coisa é certa: até ver, para mim, Mickey há só um, o Mouse e mais nenhum!
Minnie
ninguém escreve sobre cinema como o Mangas. ninguém. nobody.
a sério?
assédio
a sério & alvim
ASSÍRIO, SIM!
Eu, tu e o Diabo sabemos que aquele Óscar é dele ❤️
Enviar um comentário