03/10/10

360 graus, Coimbra, por Numb

E prontos: os U2 lá tocaram ontem no meu quintal! Tocaram é como quem diz... O espectáculo que apresentam não pode ser visto como estritamente musical: é um espectáculo multi média high tech em que a música é uma componente (fundamental, claro!), mas não a única. Montar um espectáculo destes envolve coisas tão diferentes como a engenharia e a arquitectura (a solução do palco a meio do relvado como uma enorme ilha cercada pelo mar revolto da multidão, a forma da garra, a alusão à nave espacial), luz, cor, som, performance, etc, etc. Vai longe o Verão de 1982 quando vi estes mesmos U2 em Vilar de Mouros, à data uma pequena banda irlandesa que despontava, dois discos gravados, apenas um (Boy) editado em Portugal. Lembro-me que eles cairam cá por acaso, para substituírem um grupo que falhou à última hora - já não me lembro do nome desse grupo mas nunca mais perdi os U2 de vista, já então me pareceram uma super banda com uma energia fantástica. Nessa altura apenas tinham essa energia e uma música do outro mundo. Fiquei impressionado com aquele guitarrista, The Edge, que tanto tirava sons planantes da guitarra como riffs distorcidos e com a vitalidade do vocalista, Bono Vox que, nesse concerto, para desespero da segurança resolveu escalar as colunas do palco até ao cimo. Nesse concerto Bono fez um número que repetiu ontem: sacou uma fã para o palco e pôs-se a dançar com ela. Resulta sempre, a malta fica em delírio...

Os U2 que vi ontem já pouco têm a ver com os jovens irlandeses de 82. Mantêm a mesma vitalidade, mas o espectáculo é outro, uma espécie de celebração religiosa dos mega hits que o grupo foi editando eo longo de décadas de carreira. Em muitas músicas Bono nem precisa de cantar, o público está lá para isso, para as palminhas colectivas e para os coros dirigidos pelo maestro Bono. Aquilo é um ritual. Os U2 já não dependem tanto da música como em 82.

Mas tudo isto é natural. Os tempos são outros, a banda tornou-se a segunda maior do planeta (a seguir aos velhos Stones), eu sabia perfeitamente que o formato é agora este.

O concerto abriu com Beatiful Day, depois de uma introdução gravada a anunciar o clima sideral do concerto com Space Odity de David Bowie. Seguiram-se, por esta ordem, I will follow (um regresso ao concerto de 82 e um dos momentos da noite), get on your boots, magnificence e depois perdi-lhes a conta. Sei que tocaram elevation, i still haven`t found what i`m looking for, she moves (in misterious way), where the streets have no name (outra grande execução numa colagem a uma balada que tocaram antes), sunday bloody sunday, city of blinding lights (outro grande momento, o culminar dos efeitos especiais) vertigo (fantástico), miss sarajevo (fabuloso com Bono a fazer de Pavarotti nas partes em italiano), moment of surrender, i go grazy, one, walk on, e fecharam com with or without you. Pelo meio tocaram mais umas músicas cujo nome não sei.

De fora ficaram algumas das minhas preferidas mas ficariam sempre fosse o que fosse que eles tocassem. Mas tive pena de não ouvir pride, zoostation, zooropa, numb, gloria,lemon, gloria, bad, baby face... Mas reconheço-lhes o mérito de não fazerem do concerto uma parada de hits. Nem isso seria coerente com a postura da banda.

Do que não gostei mesmo foi do volume de som nas músicas mais rápidas e conhecidas. Acho que nessas músicas eles abusaram da potência e o resultado foi um efeito de barragem sonora em que não dá para reconhecer os diferentes instrumentos. É estranho que a guitarra do the edge surja compactada numa massa sonora indistinta. Os riffs de vertigo, de get on your boots ou de beatiful day mal se reconheciam no meio daquela amálgama sonora, quando deviam perceber-se claramente. Acho que nestas músicas o excesso de volume tirou energia quando era suposto produzi-la.

Quanto ao palco, a famosa garra de 360 graus é uma grande ideia. No início pareceu-me não resultar muito bem porque se perdiam os efeitos de fundo que existem nos palcos tradicionais. Mas depois percebeu-se que isso foi apenas uma opção na primeira parte do concerto. A partir da segunda série de músicas, a «nave espacial» foi ligada e somos esmagados com toda a panóplia de efeitos especiais aguardados. Há uma declaração de um astronauta numa estação espacial, sunday bloody sunday é tocado num fundo verde (Irlanda), mas curiosamente, as imagens são de intifadas em países muçulmanos, aparecem imagens de apoio a Aung Suu Kiy e até o bispo Desmond Tutu aparece numa mensagem a dizer-nos que as pessoas que venceram com Luther King, com Mandela e outros contra os regimes despóticos, são sempre as mesmas e estão ali... somos nós ( e eu pensei que esta mensagem é irónica quando dirigida a um povo que vota duas vezes num tiranete e que, portanto, é um exemplo não só de amorfismo, mas de amorfismo masoquista. Não, não somos nós um bom exemplo de um povo que derruba farsantes).

Hoje os U2 voltam ao meu quintal e está a chover. Seria lamentável se o concerto fosse cancelado por esse motivo. Espero que não. O pior do concerto de ontem foi quando recebi um sms do meu amigo roberto que teve convite para a zona vip. Dizia: «as gambas não estão más». E eu apertadinho na relva, em luta desesperada por um cantinho conquistado à custa de muita cotovelada não tive outra hipótese que não fosse remeter-lhe um «pó caralho». Até nos U2 há classe sociais, fónix...

7 comentários:

dromofilo disse...

Os devotos desculpar-me-ão, mas o Outubro musical em Coimbra vai ficar assinalado não pelo tremendismo basbaquento high-tech-sci-fi dos U2, mas pelo lirismo outoniço de Lloyde Cole, dia 19 de outubro no TAGV. " Are You Ready To Be Heartbroken?”

Anónimo disse...

lirismo outoniço é muito bem visto, dromo. Caiu-me do céu um bilhete para os U2; vamos lá ver com o Loyd...
Numb

Anónimo disse...

Alinhamento do concerto:

1. The Return of The Stingray Guitar
2. Beautiful Day
3. I Will Follow
4. Get On Your Boots
5. Magnificent
6. Mysterious Ways
7. Elevation
8. Until The End Of The World
9. I Still Haven't Found What I'm Looking For
10. North Star
11. Mercy Play
12. In A Little While
13. Miss Sarajevo
14. City Of Blinding Lights
15. Vertigo
16. I'll Go Crazy If I Don't Go Crazy Tonight
17. Sunday Bloody Sunday
18. MLK
19. Walk On

Encore 1
20. One
21. Where The Streets Have No Name

Encore 2
22. Hold Me, Thrill Me, Kiss Me, Kill Me
23. With Or Without You
24. Moment of Surrender

Uma ressalva só: se a memória não me trai, creio que eles acabaram com with or without you e não com moment of surrender.

automotora disse...

Este teu post é hoje citado no Público. Parabéns, Numb! Parabéns Tapor.
Acho que não faz sentido comparar os U2 com o Lloyd Cole, dromofilo. Tanto precisamos do "tremendismo basbaquento" dos U2 como do intimismo outonal do Lloyd Cole. Cada um no seu momento,e cada um no seu espaço. É como comparar os Stones com o Sérgio Godinho, ou cozido à portuguesa com arroz de lampreia. Eu, como o Numb, sou de uma geração que teve os dois como referências musicais e não renego nenhum. Se os U2 agora querem embrulhar a coisa num especátulo pirótécnico, tanto melhor para o espectáculo, desde que não esqueçam a razão pela qual estão ali e o motivo principal que leva tanta gente, de duas ou três gerações, ainda aos seus concertos: aquelas canções que continuam a ser hinos.
Foi pena não terem tocado o Gloria, a malta mais velhinha teria agradecido. Fica aqui:

http://www.youtube.com/watch?v=2GyTdo1nGO0

dromofilo disse...

Desculpa lá, ó Automotora, o texto do João Lisboa é longo, mas saborosíssimo e indubitável.

«Nietzsche poderá ter matado o deus judaico-cristão mas os deuses pagãos do rock’n’roll continuam, aparentemente, de óptima saúde e as catedrais onde se celebra o seu culto não são, de certeza, obras de arquitectura e engenharia inferiores aquelas que lançaram os mestres do gótico num vertiginoso despique pela construção em altura que apenas terminaria, em 1284, com o colapso das abóbadas de Beauvais. A "estação espacial" (ou "garra"), imenso coreto sci-fi, que constitui o palco/cenário da digressão "360º", dos U2, não corre, seguramente, tal risco – os prodígios de concepção e inovação tecnológica que exigiu, já testados em mais de seis dezenas de concertos antes de chegar a Coimbra, são garantia suficiente – e a intensidade do fervor das "folk masses" (Bono dixit) que aí têm lugar rivaliza, sem dúvida, com as da Idade Média. Na verdade, o melhor posto de observação será sempre o do sofá, perante a exibição do DVD: se a participação, ao vivo, no acto comunitário de fé fica reduzida a zero, a multiplicação dos ângulos e pontos de vista é incomparavelmente superior à de quem, no estádio/arena, fica circunscrito ao seu meio metro quadrado útil e condenado a acompanhar a liturgia pelo que vê projectado no ecrã (gigante e cónico mas ecrã). No fundo, a menos que o que, realmente, conte seja a comunhão fraternal de transpirações com o círculo de corpos imediatamente contíguo e a fusão das vozes nos grandes corais de recorte sonoro assaz semelhante aos do show business "desportivo" que ali, habitualmente, ocorrem, no sofá ou sufocando o relvado, tudo é identicamente virtual.
Desde a “Zoo TV Tour” (que, entre 1992 e 1993, levou o novo evangelho "cyberfiction" de Achtung Baby às massas), um concerto dos U2 nunca mais deixou de ser um ponto de encontro entre o "state of the art" tecnológico, a convenção planetariamente ecuménica de todas as confissões religiosas, o épico "overload" sensorial de agit-prop em favor das inúmeras causas de "direitos humanos", a gloriosa encenação audiovisual de uma síntese eclética da literatura de auto-ajuda e o que sobreviveu da música de um antigo quarteto punk de Dublin. Na "360º Tour”, sob os focos de luz que jorram da garra crustácea coroada por uma cúpula muçulmana/ortodoxa em cebola, simultaneamente semideuses-objecto de veneração e sacerdotes celebrantes, os U2, nas palavras de Bono, assumem, temporariamente, a pele de outras divindades: ele seria uma combinação de Schwarzenegger, Danny DeVito e Dennis Hopper, Larry Mullen encarnaria James Dean, The Edge teria raptado o corpo de Mr. Spock, e Adam Clayton (de facto, a uma certa luz, um clone quase perfeito do ministro das Finanças, Teixeira dos Santos), a cara chapada de Clark Gable.»
E, correndo, caminhando, voando, sobre o duplo círculo do ora altar, ora púlpito, debruçando-se das pontes que o aproximam do fervilhante enxame lá em baixo, insufla-lhe o poder do canto para que, com ele, possam repetir que também ainda não encontraram aquilo de que andam em demanda, que já é tempo de limpar as lágrimas do rosto e, imediatamente a seguir à exortação autocrítica “Enough of the folk mass!”, salmodiar (em "Until The End Of The World") “We broke the bread, we drank the wine”. Dos altos céus e do vídeo-fogo-de-artifício, descerão também os santos: o bispo Desmond Tutu, a mártir birmanesa, Aung San Suu Kyi, o comandante Frank De Winne, da International Space Station, recitando a letra de "In A Little While", uma réplica-BD do carro de Deus/"mothership" do bíblico Ezequiel e o verde islâmico da paz. “At the altar of the dark star” e “through the stations of the cross”, depois de apelar a uma Via Láctea de telemóveis, com "Moment of Surrender", a cerimónia é dada por concluída. Ite missa est.»

João Lisboa - Provas de Contacto

Automotora disse...

Pois, ó dromófilo. Eu acho que saboroso foi concerto dos U2 e quem me dera ter podido. O texto do johny lisbon é um monumento de pretenciosismo bacoco, cheio de referências culturais e coiso e tal. O que é que o gajo quer? um palco, duas guitarras, uma bateria, e um PA com duas colunas de som, uma de cada lado do palco? Em nome de uma suposta pureza original do pop? Eu não tenho grande pachorra para esse gajo. Aliás, aposto que o gajo esteve lá todo o tempo a curtir, ó ó.

Anónimo disse...

acho que o texto do lisboa é um ponto de vista interessante e estou de acordo com aquela caracterização do concerto como um ritual de massas high tech. Por muito menos fez-se o punk nos anos 70-90 contra os excessos do rock sinfónico.
Mas acho que reduzir o concerto dos u2 a isso é demasiado simplista e não acho nada que seja melhor o visionamento do 360 graus virtual no vídeo. o vídeo é sempre uma sombra da verdadeira realidade que é o concerto e não é pelo lado de participação ritual: é porque, de facto, o som é outro, a cor, o movimento, tudo é muito mais brutal ao vivo.
Numb