01/02/07

As Laranjeiras da Avenida, por Automotora


Na semana passada morreu Ryszard Kapuscinski, por muitos considerado o melhor reporter do século XX, referência moral e profissional de mais do que uma geração de jornalistas. Entre as suas obras de referência está “Ébano”, um comovente testemunho da vida do homem comum numa Africa em convulsão. Bom, e sendo assim, tive de ser eu a fazer um post sobre as laranjeiras da avenida.
Sim, claro, existem laranjeiras ao longo da Avenida Fernão de Magalhães, cada uma em seu canteiro, carregadinhas nesta altura do ano com as chamadas laranjas de inverno, também chamadas pré-primaveris ou saturninas. Descobri este triste e perturbador espectáculo na passada semana. Não é que as árvores tivessem sido ali plantadas na noite anterior. Eu próprio já devo ter esbarrado nelas centenas de vezes, concerteza que sim, uma vez que trabalhei na avenida durante anos. Simplesmente, acontece que nunca reparei nelas e nunca reparei nelas porque nunca supus que pudesse ter motivos para reparar em laranjeiras numa avenida, como é fácil de entender. É que não estamos a falar de um boulevard, um passeio público, muito menos de um parque, mas sim de uma avenida cheia de tráfego rápido e barulhento, sem qualquer préstimo de lazer ou fim de semana, e quem em tempos foi mesmo classificada, para nosso orgulho, como a via mais poluída do País. Ora, a laranjeira não tem o panache urbano-depressivo do jacarandá, essa árvore gótica tão cantada pelo nosso Grão, O Homem que Via Passar os Jacarandás, e que se presta a enfeitar os passeios (o jacarandá, não o grão) e até a servir de amortecedor de acidentes de trânsito (não, não, o jacarandá). A laranjeira é antes uma discreta árvore pop rural, uma peça humilde de design utilitário, que está para a avenida, como um separador central de betão com postes de iluminação de trinta metros de altura está para o pomar das nossas avós. Os seus frutos são pequenos objectos redondos que se espremem, e não é suposto que numa avenida existam objectos que se espremam. Em havendo aí do que se esprema, que pelo menos da espremação saia um líquido negro viscoso, não uma aguadilha alaranjada, cor de carro do noddy quando vai de piquenique com a ursinha teresa. E que dizer das lagartas das laranjeiras, que têm de vir à cidade, quais marias papoilas, cumprir a sua função, nada habituadas concerteza à convivência com as bactérias e insectos mutantes de toda a espécie que por aqui pululam? Tive então forçosamente de concluir que aquela é uma avenida ridicula, que hesita entre correr a comer laranjas junto a um regato, e ficar ali a escoar as camionetas de carreira para Vila Nova de Poiares.
Estava eu nisto, olhando estupefacto e constrangido para uma das laranjeiras, num turbilhão de emoções, quando me apareceu o seguinte dilema que mais me atrasou o destino: de que natureza é o acto de apanhar laranjas numa avenida? E se deitar agora a mão a uma laranja, será que não quebrarei o equilíbrio cósmico e que toda a avenida não começará a girar em espiral, sumindo-se num ralo, com toda a gente a fazer esgares de horror como no quadro do Munch?
É preciso que se saiba também que nessa mesma tarde tinha estado a olhar para o tecto da sala de atendimento da nossa câmara municipal, tentando descobrir se aquilo era ou não uma pintura em tromp d’oeil. Foi um dia inesquecível.

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