22/02/07

Le Cadavre Esquis e o Álbum Branco, por Fool on the Hill


Às vezes um blog funciona de um modo muito semelhante à velha técnica surrealista do «cadavre esquis». Há um post de um escriba que suscita outro post de um outro escriba e depois mais outro e no fim temos um resultado final que é uma página escrita a várias mãos. Um análogo (já que não se trata exactamente do mesmo processo) de um cadavre esquis virtual.

Agora aconteceu outra vez. A efeméride do George Harrison evocada pelo Cão fez-me pensar no meu disco preferido dos Beatles. O Harrison até assina uma música e tudo (While my guitar…). Pensei, por isso, que se impunha um post sobre o Álbum Branco e cá está ele.

Este é o meu disco preferido dos Beatles, o mais complexo, o mais sofisticado, o mais místico e o mais apocalíptico. É um disco praticamente perfeito em que cada música vale na sua singularidade mas não só – as músicas têm uma espécie de ligação entre si e o álbum possui, claramente uma unidade de conjunto. As músicas de White Album são diferentes das dos outros discos dos Beatles: ouve-se Glass Union, Dear Prudence ou Mother Nature´s Son e sabe-se que pertencem ali e que não poderiam estar em mais nenhum outro álbum deles. Nesse sentido o Álbum Branco é um disco conceptualista, como o é Sgt Peppers, por exemplo, cujas músicas também possuem uma continuidade evidente (já outras peças dos Fab Four como o seminal Revolver, como Rubber Soul ou como os primeiros discos já são outra coisa. Abbey Road parece-me uma solução intermédia).

Em 1968, ano da edição do White Álbum e passadas algumas digressões falhadas, os Beatles já tinham dado um safanão nas suas carreiras – já não eram a banda pop juvenil que punha as miúdas em histeria nas suas apresentações ao vivo; eram músicos de estúdio, compositores clássicos que trabalhavam e burilavam os seus discos durante meses e meses. Praticamente tinham deixado de tocar ao vivo. Tinham enveredado pelo misticismo budista e haviam regressado da índia onde haviam contactado com gurus Zen e com o músico Ravi Shankar que os havia de marcar fortemente (principalmente a George Harrison). Deixaram crescer os cabelos e a barba, agora pareciam hippies, e andavam metidos em experiências alucinogénias. Pelo meio iam mantendo o filão comercial com músicas como Obladi Oblada («avis rara» de White Album), para não perderem o hábito dos tops.

A história deste disco começa na capa. Segundo rezam as crónicas havia na altura um impasse entre a proposta gráfica de McCartney que pretendia um grafismo à base de recortes de jornal e a transparência total defendida por Harrison. O Designer, Richard Hamilton, propôs esta solução de consenso – o branco puro, imaculado que se havia de tornar num dos mais lendários covers da história da música Pop. Um cover anti cover. Na altura o significado desta opção foi tanto mais relevante se pensamos que estamos no período áureo do psicadelismo e da sua embriaguez colorida. Inicialmente as capas de White Álbum vinham numeradas como se fossem produtos de série industriais. O nome do grupo aparecia em relevo, sem cor, mas quando os cds destronaram o formato LP tudo isto se perdeu. Se alguém tem uma capa velhinha das primeiras edições do Álbum Branco, com os retratos no interior dos quatro Beatles guedelhudos e barbudos, é guardá-la que é coisa para valer uns cobres…

Não sei dizer entre tanta música excelente qual delas prefiro. Continuo a pensar neste disco com um todo, sei a sequência das músicas de memória, aquilo é como uma auto-estrada sem portagens com uma continuidade saliente. Não posso dizer que tenho uma faixa preferida porque acho tudo perfeito (com a excepção de Back in Ussr e de Obladi, duas concessões comerciais), umas vezes redescubro uma música, passados outros tempos reparo noutra e isto é cíclico. Ainda agora tenho o Álbum Branco no Cd do meu carro. Deve ser a milésima centésima vez…

E depois há a mitologia do álbum, o seu simbolismo satânico e apocalíptico. Charles Manson dizia que os Beatles falavam com ele através do disco. Helter Skelter, dizia Manson, seria o anúncio do apocalipse, da revolta dos negros contra os brancos; Revolution anunciaria o futuro (Revolution # 9 teria mensagens subliminares perigosas); Black Bird, confessava Manson, dava-lhe vontade de matar (mas também, a Manson, tudo lhe dava vontade de matar)… Quando o mais famoso criminoso ainda preso numa prisão americana mandou executar o massacre que ceifou a vida a Sharon Tate, os jovens assassinos da «família» Manson deixaram escrito nas paredes, a sangue, a expressão Helter Skelter (por acaso mal escrito, «skaelter»). Isto chegou para associar o disco ao satanismo. Os meios conservadores que odiavam os Beatles aproveitaram para lhes lançar anátemas e declararam o disco maldito: acusava-se os Beatles de provocarem a violência, um pouco como se faz hoje com o Wrestling ou com o Dragon Ball, também réus da violência praticada pelas crianças… Tiveram azar. Com o tempo, isto contribuiu para fazer do disco o mito que ainda é hoje. E como esquecer que, para lá deste lado negro que está realmente associado ao disco, há também um lado optimista e colorido ilustrado em Somethig como em mais nenhuma outra música? De Something disse Sinatra que a gravou um dia: «É a mais bela canção de amor que alguma vez foi escrita. E não diz uma única vez a palavra amo-te».

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