16/02/07

A Metamorfose, de Franz Kafka, por Melquíades

Toda gente conhece Franz Kafka dos inacabados “O Processo “ e “O Castelo”, mas poucos leitores param e atentam no livro “A Metamorfose”. Para mim, que tenho Kafka como uma das releituras preferidas, a sua genialidade está antes de mais no pequeno e acabado, Metamorfose.

“Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na cama metamorfoseado num monstruoso insecto.” Assim começa o Metamorfose e pouca mais acção há. O livro é pequeno, mais novela que outra coisa, e traduz-se nisto: Gregor Samsa, caixeiro-viajante que se mata a trabalhar para prover à família que adora - pai e mãe, já velhotes e uma irmã novinha -, acorda naquela manhã transformado num nojento e gigantesco insecto. Não pode falar, não pode sair do quarto, não pode fugir; e não maltrata ninguém, uma vez que mantém pensamento humano. Reconhece a família e o mal que lhes está a fazer e a família reconhece o insecto de pesadelo como sendo o filho extremoso, Gregor Samsa.

Mas como é que se vive com a monstridão? Esta é a pergunta que logo de início nos salta à cabeça, perante a empatia para com a família do mostrengo. Mas a arte de Kafka leva-nos muito mais além do que isto e a pouco e pouco, passado o susto da fantástica metamorfose, já não sabemos quem é o monstro. Começam a aparecer outras monstruosidades ao longo da Metamorfose. A monstridão pode estar em qualquer lado e mesmo no meio de nós. Até o leitor pode ser o monstro. Qualquer de nós se identifica com tudo aquilo. De um lado e de outro. Ali não há preto e branco.

Já li e reli “A Metamorfose” muita vez e descubro-lhe sempre uma nova perspectiva. Em regra tenho simpatia pelo novo Samsa. A sua metamorfose é uma reacção à insanidade e ao vazio em que vivia. Foi o corpo e não a cabeça que lhe disse “Não” à continuação da labuta esgotante, transformando-se naquilo que a impossibilitava, a monstridão. Transformado o corpo no mostrengo horrendo que nos é descrito, a cabeça de Samsa continuou como até ali, amorosa, subserviente, escrava. O metamorfoseado monstro é a mais humana das criaturas. A família, aterrada e esgotada, e que nos leva de início a maior fatia de simpatia, vai evoluindo ao longo da história e vai sendo objecto de nova metamorfose.

No final, a cabeça humana do monstro físico Samsa, não aguenta o sofrimento (ou a metamorfose) que provoca na família e suicida-se da única forma que aquele corpo lhe permite. À fome. O monstro repulsivo toma a mais humana das atitudes.

1 comentário:

Unknown disse...

Ja li esse clássico Kafkaniano e é realmente tudo isso que você falou e mais um pouco.

Salman Rushdie tentou algo parecido em seu folclórico "Versos Satanicos" ao também metamorfosear seus personagens.

Mas nada chega perto de Kafa. A forma como ele descreve a repugnância a que os parentes de Samsa sentem por ele, é muito diferenciada.

Parabéns pelo release do livro. Excelente.

Abraços

Daniel
www.ideiascorporativas.wordpress.com